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SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO ANTIJURÍDICA DE UM FALACIOSO “RACISMO REVERSO”

Atualizado: 4 de nov. de 2020

Área do Direito: Administrativo

No final do mês de setembro do corrente ano, um defensor público federal do 3º Ofício Trabalhista da Defensoria Pública da União em Brasília/DF ajuizou uma ação civil pública (Processo nº 0000790-37.2020.5.10.0015) junto à Justiça do Trabalho, postulando que a empresa Magazine Luiza S/A deixasse de limitar as inscrições para o seu programa de trainee em andamento por meio de critérios raciais. A tese levantada pelo agente público é de que um processo de recrutamento exclusivo para pessoas negras corresponderia a ato de discriminação racial, pelo que postulou, em liminar, a reserva de vagas para candidatos não negros e, em definitivo, que a seleção fosse reconhecida inconstitucional.

De plano, destaca-se que, com base no inciso III do parágrafo 1º do artigo 330 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), é inepta a petição quando da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão, e esse é justamente o caso em tela. O postulante se ocupa em afirmar que, frente ao certame para seleção de colaboradores negros, se tem uma situação de racismo contra pessoas não negras, para requerer ao final o reconhecimento da inconstitucionalidade de tal ação afirmativa, requerendo inclusive valores a título de dano moral coletivo, o que afronta não só a lógica, mas também a melhor técnica jurídica, especialmente por atingir direitos de um grupo vulnerável.

O texto constitucional, em seu artigo 134, indica que à Defensoria Pública, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos Direitos Humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal. No mesmo dispositivo, o parágrafo 4º explicita que a independência funcional é um princípio institucional das Defensorias Públicas.

Nesse particular, em nota de esclarecimento sobre a situação concreta, a Defensoria Pública-Geral da União, órgão de administração superior, pontou apoio e incentivo institucionais a medidas do poder público e da iniciativa privada na redução de carências e vulnerabilidades. Contudo, afirmou que tal entendimento não se sobrepõe ao princípio da independência funcional que gozam os defensores públicos federais em sua atuação.

Salienta-se, oportunamente, que as Defensorias Públicas no país possuem independência funcional, justamente, para assegurar sua plena liberdade de ação perante todo e qualquer órgão para fazer cumprir o seu dever constitucional de manutenção do Estado Democrático de Direito, assegurando a igualdade substancial entre todos os cidadãos.

Portanto, entende-se que a manifestação processual em comento não guarda adequação às missões institucionais e à própria razoabilidade de interpretação do ordenamento jurídico esperada de um defensor de direitos humanos. Ao imputar à empresa a prática de racismo ignoram-se normas internacionais e a legislação pátria, senão vejamos:

A Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, incorporada e ratificada pelo Brasil (Anexo XXVIII do Decreto nº 10.088/2019 (LGL\2019\10121)), ao buscar proibir atos discriminatórios nas relações de trabalho, em seu artigo 5º, dispõe que as medidas especiais de proteção previstas em outras convenções ou recomendações não são consideradas como discriminação. A saber, em decorrência da atuação dos movimentos sociais negros, o Brasil implementou a regulamentação de políticas de ações afirmativas como compromisso assumido na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância correlata, promovida pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 2001, da qual foi signatário1

O Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010 (LGL\2010\1541)), nessa mesma linha, no parágrafo único de seu artigo 1º, conceitua: a) discriminação racial ou étnico-racial como toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada; b) desigualdade racial como toda ação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnicas; e c) ações afirmativas como os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.

O referido Estatuto, ainda, prevê, ao tratar do direito ao trabalho, em seu artigo 39, que o poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando o incentivo à adoção de medidas de igualdade material nas empresas e organizações privadas. O programa de trainee judicialmente questionado, nesses termos, atende às prescrições legais e, na mesma medida, enfeixa o planejamento de combate prático ao racismo proposto pelas Nações Unidas.

Salienta-se que a ação civil pública ajuizada, em contrariedade ao que alega pretender, atinge direitos fundamentais da população negra, enquanto grupo vulnerável, legalmente protegida pela sistemática introduzida pelo aludido Estatuto – norma que, completa uma década de vigência no presente ano, e que reconhece o caráter estrutural do racismo contra essa coletividade étnico-racial na sociedade brasileira – e também pela Lei Complementar nº 80/1994 (LGL\1994\26) – norma que, em seu artigo 4º, XI, afirma como função da Defensoria Pública o exercício da defesa dos interesses individuais e coletivos dos grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado. Inclusive, em nota técnica, o Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, reconhece a legitimidade da política afirmativa de igualdade racial proposta pela empresa, repudia a atuação do defensor público federal proponente e anuncia a sua atuação no referido processo coletivo, ao lado dos movimentos negros, para ver malsucedida a pretensão levantada. Trata-se, no caso concreto, da Defensoria Pública da União atuando a favor e contra a procedência da ação.

Cumpre, igualmente, destacar que o defensor público, enquanto agente político, que deve atuar de forma imparcial, na busca dos objetivos e funções institucionais, dotado de prerrogativas inerentes à carreira de Estado que ocupa, não pode malversar o conteúdo jurídico das normas. O artigo 34, inciso XIV, do Estatuto da Advocacia, a título de exemplo, identifica como infração disciplinar deturpar o teor de dispositivo de lei para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa.

A imputação de prática de racismo à empresa, valendo-se da Lei de Crimes Raciais (Lei 7.716/1989 (LGL\1989\11)), e a afirmação de que o programa proposto constitui discriminação ilícita na seleção de empregados, em afronta ao inciso XXX da Constituição Federal, vai de encontro à dramática realidade pela qual se percebe que: “a população negra do Brasil é mais pobre, possui menos acesso a serviços essenciais e à educação. O racismo tem alimentado uma rede intersetorial de desigualdades, de forma que se fôssemos dividir o país em dois, o Brasil branco teria um IDH, de 0,814, e o Brasil negro, de população parda e preta, teria um IDH, de 0,703. Se fossem dois países distintos estariam separados por 61 posições no ranking de desenvolvimento humano”.2

A peça exordial, assim, é exemplo do que Adilson Moreira3 nomina como “humanismo racial brasileiro”, isto é, a doutrina de negação da necessidade de políticas de inclusão de pessoas negras, a partir da articulação dos princípios liberais e da ideologia da democracia racial. Concepções que vão de encontro às promessas de transformação social presentes no texto constitucional e perpetuam uma ordem social construída, de forma institucional e sistêmica, para privilegiar pessoas brancas. Fato é que a ação civil pública proposta oportunisticamente ignora a realidade concreta de exclusão social da população negra, ocupando-se precipuamente do interesse não negro nas relações de trabalho que pretende tutelar, dando azo à falaciosa ideia de “racismo reverso”.

Em que pese o contexto de pandemia global do novo coronavírus, que por certo tem impactos indeléveis no mercado de trabalho, a realidade brasileira de desigualdade racial somente se fez agravar. Tentar fazer crer que o racismo, sistema de expressões estrutural, material e histórica, é subjetivamente direcionado à população não negra quando episodicamente uma empresa adota uma política afirmativa pró-população negra é indubitavelmente uma expressão antijurídica manifesta processualmente. A peculiar judicialização proposta pelo agente público, valendo-se de prerrogativas institucionais, ataca, para além do programa de trainee, medidas de reparação histórica e de combate às desigualdades estruturais presentes, expressando, em essência, ato processual racista e, ainda, juridicamente imoral.

A moralidade administrativa, tutelada pela Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992 (LGL\1992\19)), é nevralgicamente atingida no bojo de tal pretensão, uma vez que seu proponente atua dolosamente contra os princípios da própria Defensoria Pública, violando os deveres de imparcialidade, legalidade e melhor inteligência da ordem jurídica, como na descrição típica do artigo 11 do aludido diploma. Situação que, por si só, enseja medida correicional no âmbito da instituição e, em ultima ratio, caracteriza-se como ausência de justa causa para o ajuizamento da ação civil pública, o que se trata de flagrante desvio de finalidade, nos termos do parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 4.717/1965 (LGL\1965\10), e pode enquadrar-se como situação de abuso de autoridade, tipificada no artigo 30 da Lei nº 13.869/2019 (LGL\2019\7819).

Dessa forma, assevera-se a população negra, enquanto grupo vulnerável, está abarcada pela tutela do direito em planos internacional, constitucional e legal, sendo a ela garantidos direitos fundamentais indisponíveis, políticas públicas específicas e ações afirmativas públicas e privadas. A discriminação racial contra negros e negras judicializada de modo explicitamente antijurídico, por conseguinte, deve ser veementemente reprovada, sendo judicioso ter em conta que as manifestações processuais jamais se furtam da observância aos direitos de negras e negros neste país.

1 Reconheceu-se que: a) a escravidão e o tráfico de pessoas escravizadas foram crimes contra a humanidade, especialmente por sua magnitude, natureza de organização e negação da essência humana das vítimas, sendo as maiores manifestações e fontes do racismo; b) africanos, afrodescendentes e povos indígenas foram e continuam a ser vítimas das consequências desses crimes contra a humanidade; c) a pobreza, o subdesenvolvimento, a marginalização, a exclusão social e as disparidades econômicas estão intimamente associadas ao racismo e contribuem para a persistência de práticas e atitudes racistas as quais geram mais iniquidades entre as pessoas; d) as consequências negativas de ordem econômica, social e cultural do racismo e da discriminação racial têm contribuído significativamente para o subdesenvolvimento dos países em desenvolvimento; e) existe a necessidade de se colocar um fim à impunidade das violações dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de indivíduos e de grupos que são vitimados pelo racismo e pela discriminação racial; f) o valor e a diversidade da herança cultural dos africanos e afrodescendentes, assim como a importância e a necessidade de que seja assegurada sua total integração à vida social, econômica e política, visando a facilitar sua plena participação em todos os níveis dos processos de tomada de decisão. 2 AMORIM, Ana Mônica Anselmo de; MORAIS, Monaliza Maelly Fernandes Montinegro de. Litigância estratégica na Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2019. 3 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019, p. 203.


Veyzon Campos Muniz

Doutorando em Direito Público pelo Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra. Mestre e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Paulista e em Direito Público pela Universidade de Caxias do Sul. Associado à Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as). Filiado ao Movimento Negro Unificado. Cofundador do Instituto da Advocacia Negra Brasileira. veyzon.muniz@gmail.com

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