O CASO LIBERFLY, MEDIAÇÃO E ATOS PRIVATIVOS DA ADVOCACIA
- Raul Maia
- 3 de jul. de 2021
- 6 min de leitura
Área do Direito: Civil; Processual; Comercial/Empresarial
Sumário: 1. Breves premissas - 2. Mediação extrajudicial e o porquê da Liberfly (ou outras startups que atuem na mesma dinâmica) não poderem se enquadrar em tal atividade - 3. Conclusão
1. Breves premissas
A incessante marcha tecnológica desafia o Direito a todo momento. Dentre inúmeros recortes possíveis a partir desta afirmação, a prestação de serviços de caráter jurídico, mormente em ambientes digitais, demanda uma constante fiscalização de órgãos públicos e de classe, a fim de garantir a observância do disposto em lei e obstaculizar a usurpação de funções privativas a determinados profissionais. Nada obstante, em um cenário de empreendedorismo efervescente, ilustrado pelo aumento de lawtechs e startups, também não se pode olvidar que a regulação de determinadas atividades deverá ser revisitada e readequada para uma nova realidade socioeconômica, sem prejuízo da eventual análise por parte do Poder Judiciário segundo os marcos já vigentes no ordenamento.
Um exemplo concreto do contexto acima pontuado pode ser visto na recente condenação da startupLiberfly. A Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro, no último mês de maio, julgou procedente a ação civil pública proposta pela seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil, reconhecendo que a empresa em questão não atuaria como mediadora, mas sim como assessora jurídica do consumidor, razão pela qual violaria o disposto no artigo 1º da Lei 8.906/94 (LGL\1994\58). Nesta medida, por realizar atividade privativa do advogado, “(...) deve obediência ao Estatuto e ao Código de Ética da OAB, especialmente no que se refere às normas atinentes à publicidade dos serviços ofertados (...)”, determinando a cessação de qualquer atividade consistente em “(...) anúncio, de publicidade ou de divulgação de oferta de serviços consistentes na angariação ou captação de clientela, por qualquer meio, físico ou digital.”.
A decisão destacada vai de encontro com uma preocupação externada nos últimos tempos pela OAB, em especial no campo da defesa dos consumidores e prestadores de serviço aéreo. A entidade compreende que a atuação de empresas com modelos de operação similares a Liberfly contradizem os comandos deontológicos da profissão e promovem concorrência desigual com aqueles integrantes dos quadros desse Conselho de Classe – incorrendo, ulteriormente, em exercício ilegal da profissão. Todavia, não se ignora também que, em certa medida, “áreas cinzentas” são propiciadas por uma normativa defasada, especialmente frente ao surgimento de ferramentas tecnológicas não abarcadas por conceitos prévios, como também em relação ao tema de marketing jurídico na advocacia.
Com efeito, é oportuno, a partir do caso em comento, deter-se em alguns pontos relevantes da controvérsia levada à julgamento da Justiça Federal no Rio de Janeiro. Em específico, na delimitação aqui posta, vale analisar a tese de mérito arguida pela startup para buscar descaracterizar a alegação de que realizaria atos privativos da advocacia – fundamento o qual, nesta ocasião, encontra-se refutado pela decisão do Poder Judiciário.
2. Mediação extrajudicial e o porquê da Liberfly (ou outras startups que atuem na mesma dinâmica) não poderem se enquadrar em tal atividade
O cerne da contestação da empresa Liberfly reside na alegação de que o serviço ofertado pela startup consistiria em mediação extrajudicial, e não assessoria ou representação jurídica. Por conseguinte, tendo em vista que a Lei 13.140/15 (LGL\2015\4771), em seu artigo 9º, não exige ser o mediador registrado em qualquer entidade de classe ou associação, estaria a companhia à margem da regulamentação e fiscalização da OAB. Outrossim, sua atividade não configuraria captação indevida de clientes ou publicidade proibida, pois não estaria sujeita às disposições da Lei 8.906/94 (LGL\1994\58), do Código de Ética da Advocacia e do Provimento 94/2000 do Conselho Federal da OAB.
Destarte, para a exata compreensão deste raciocínio – e as razões pelas quais a Justiça Federal fluminense não deu guarida aos argumentos defensivos – deve-se compreender os marcos dispostos no conjunto de normas voltados à disciplina da mediação. Por certo, a regulamentação da mediação extrajudicial foi um claro avanço com a promulgação da Lei 13.140/15 (LGL\2015\4771), assim destacado por Tartuce (2016), propiciando segurança jurídica na compreensão de quem pode exercer o papel de mediador nessa etapa, os princípios os quais devam reger a atividade, bem como as hipóteses de impedimento e suspeição aplicáveis na espécie.
Deste modo, em uma leitura isolada do artigo 9º da supradita lei, realmente não há problema em uma empresa ofertar serviços de mediação extrajudicial privada por intermédio de profissionais capacitados para tal cargo, advogados ou não. Todavia, o que parece colmatar a linha argumentativa da startup é o fato de, notoriamente, ser o seu serviço diretamente voltado à defesa dos interesses do consumidor, buscando representá-lo em desfavor da companhia aérea. Isso acaba por revelar uma posição parcial da empresa quando busca uma resolução do caso em sede extrajudicial, incompatível com o princípio declarado no inciso I do artigo 2º da Lei de Mediação – e, portanto, com o papel do mediador, o qual deve ser um terceiro imparcial, neutro nessa relação (MARTINS, VALDETARO, SIMÕES, 2019).
Tal conclusão foi reforçada em sentença, sobretudo, pelo fato de, pelo menos quando da propositura da ação, haver a previsão de um percentual de êxito destinado a startup caso houvesse sucesso na conciliação. Por pressuposto, no momento em que o mediador possui perspectiva de sucesso monetário condicionado ao resultado favorável de uma das partes envolvidas na mediação, toda e qualquer imparcialidade se encontra comprometida. Não se questiona a legitimidade da percepção de honorários pelo mediador extrajudicial, pois presta serviço relevante e essencial para a consecução dessa medida (CINTRA, 2016); porém, em nenhuma hipótese poderá estar condicionada à pretensão de quaisquer dos participantes do processo de mediação, garantindo-se a sua imparcialidade como terceiro.
Especificamente quanto à possibilidade de o advogado atuar como mediador, não há impeditivo legal. Inclusive, as habilidades próprias desse profissional poderão capacitá-lo a desempenhar com excelência essa função, desde que compreendidas as particularidades do ofício. Neste ponto, cabe rememorar não ser o mediador um consultor ou assessor das partes, nem ser seu propósito traçar estratégias jurídicas para atingir determinados objetivos; deve adotar postura de terceiro neutro, sob pena de incorrer em infração ética (SOUSA, 2021). Ainda, a redação da Lei 13.140/15 (LGL\2015\4771) impõe o dever de confidencialidade à todas as partes envolvidas no processo de mediação, sujeitando a penalidades o uso de tais informações fora do seu âmbito, inclusive em esfera judicial (CINTRA, 2016) – logo, aquele que media não poderá atuar como advogado da causa ou lançar mão de tais informações para terceiros.
Logo, reforça-se a percepção gizada em sentença que a atuação da startup não se conformava aos preceitos da mediação extrajudicial. Por primeiro, ante o claro caráter de assessoria e representação jurídica do consumidor em desfavor da companhia aérea, pois almeja a indenização dos danos eventualmente suportados pelo indivíduo hipossuficiente. Em segundo, há potencial quebra do dever de confidencialidade com o uso e repasse dessas informações a advogados ou bancas indicados pela empresa, caso reste infrutífera a mediação extrajudicial. A aparente posição oposta da startup aos preceitos legais e principiológicos não parece autorizar a compreensão de que atue como mediadora, mas sim como consultora e assessora jurídica, atividades essas privativas do advogado, por força de lei.
3. Conclusão
Deste modo, conforme entendimento consolidado na sentença da Justiça Federal do Rio de Janeiro, constituindo a operação da Liberfly em atividade advocatícia típica, premente a observância dos ditames próprios da classe, inclusa as limitações concernentes à publicidade e divulgação do seu trabalho, sobretudo quando potencialmente angariam possíveis clientes para a futura propositura de ações indenizatórias, sejam por advogados próprios ou terceirizados. Se o modelo de negócio fosse limitado apenas a ofertar uma plataforma de resoluções de disputas online (ODR), inclusa a disponibilização de mediadores os quais fossem remunerados em caráter independente, e sem a indicação ou encaminhamento das mediações inexitosas para escritórios ou causídicos autônomos, concordar-se-ia com a posição de que a startup não está sujeita à regulação da OAB, já que atuaria nos estritos limites da mediação privada, regulamentada pela Lei 13.140/15 (LGL\2015\4771).
Sendo assim, entende-se razoável e correta, conforme os parâmetros legais e regulamentares atualmente dispostos, a decisão apreciada nesta oportunidade, constituindo em marco de segurança jurídica e de equilíbrio concorrencial em um ramo de atuação com guarida constitucional (art. 133, CF (LGL\1988\3)). Sem embargo, a situação serve também para renovar o debate sobre a inadiável necessidade de se atualizar os marcos normativos voltados à atuação do profissional de Direito em espaços digitais, lawtechs, marketing jurídico e outras demandas emergentes deste acelerado mundo tecnológico, conferindo segurança tanto ao advogado como ao empreendedor.
Guilherme Siqueira Vieira
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor de Direito. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado. guilhermesv@sanchezrios.com.br
Referências Bibliográficas
CINTRA, Najila Lopes. Mediação privada: aspectos relevantes da Lei 13.140/2015 (LGL\2015\4771). In Revista dos Tribunais, vol. 967, maio/2016, p. 68-85.
MARTINS, Camila Biral Vieira da Cunha; VALDETARO, Liana Gorberg; SIMÕES, Alexandre Palermo. O papel do advogado na mediação. In Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 60, janeiro-março/2019, p. 63-88.
SOUSA, Laura Zuppo de. A escolha consciente pelo advogado do seu papel na mediação. In Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 69, abril-junho/2021, p. 175-186.
TARTUCE, Fernanda. O novo marco legal da mediação no direito brasileiro. In Revista de Processo, vol. 258, agosto/2016, p. 495-516.




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