RESOLUÇÃO CONTRATUAL EM TEMPOS DE CRISE
- Raul Maia
- 29 de jun. de 2020
- 8 min de leitura
Bruno de Almeida Lewer Amorim Mestrando em Direito Privado pela PUC-MG. Pós-graduando em Direito Civil pela PUC-MG e em Direito do Consumidor pela Faculdade Damásio de Jesus. Secretário Parlamentar Federal. Advogado. Área do Direito: Civil
A responsabilidade civil se destaca como um dos temas de maior importância na seara do Direito Privado. Por meio de seus princípios, regras e diretrizes regula-se a obrigação de reparar, que nasce com a prática do ato ou a ocorrência do evento causador de dano de índole cível.
A responsabilidade civil assumiu feições variadas ao longo do tempo, sendo remodelada conforme o modelo jurídico e político vigente em cada época, em cada cultura e em cada sociedade.
No Direito Privado brasileiro, a responsabilidade civil segue uma dicotomia, recebendo no Código de Defesa do Consumidor um regramento distinto daquele classicamente insculpido no Código Civil. Para entender essa diferenciação, é preciso lembrar que ao passo que o Direito Civil brasileiro ainda é dotado de forte influência liberal, o Direito do Consumidor já adota uma matriz distinta, voltada justamente ao reconhecimento e à atenuação das desigualdades entre contratantes. Essas matrizes distintas consequentemente originaram regramentos distintos da responsabilidade civil no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.
Embora este artigo se atenha precipuamente à responsabilidade civil de consumo, serão feitas breves inserções na responsabilidade civil clássica, insculpida no Código Civil, para melhor contextualização do leitor.
Podemos dizer que o Código Civil preocupa-se, precipuamente, com a fonte do dever violado, dividindo a responsabilidade civil em contratual e extracontratual. A responsabilidade será contratual sempre que violada uma cláusula contratual e será extracontratual nas demais hipóteses, quando haja a violação de um dever legal. A responsabilidade extracontratual envolve a reparação de danos causados por ato ilícito (arts. 186 e 927, do CCB), decorrente da violação de um dever imposto pela Lei, e não por um contrato. É também chamada de responsabilidade ex delicto.
No sistema civilista, o contrato assume posição de destaque, sendo a responsabilidade extracontratual residual - ocorre por força de violação a dever que não esteja disposto em um contrato.
O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, abandona essa dicotomia - responsabilidade contratual e extracontratual -, pouco importando se existe ou não um contrato entre as partes. O Código Consumerista está preocupado com o conteúdo do dever violado, e não com a sua fonte.
Já nesse ponto, a construção da responsabilidade civil no CDC distancia-se do regime clássico do Código Civil, ganhando contornos próprios, sempre no intuito de tornar mais efetiva a defesa do consumidor. No CDC prepondera o viés protetivo (igualdade material), o qual se contrapõe ao viés da imparcialidade (igualdade formal), próprio do Código Civil.
Em razão dessa clara matriz protetiva do CDC, a responsabilidade civil de consumo encontra seu fundamento na Teoria da Qualidade, de origem francesa. A Teoria da Qualidade impõe ao fornecedor um Dever Geral de Qualidade, o qual se desdobra em dois deveres específicos: (I) Dever de Adequação; e (II) Dever de Segurança. Significa dizer que todo produto colocado e comercializado no mercado de consumo deve ter qualidade e segurança. Sob essa lógica, todo produto deve ser adequado aos fins a que se destina (art. 18, CDC) e oferecer a segurança que o consumidor dele legitimamente espera (art. 12, CDC). Não se exigem produtos inquebráveis e sem risco, mas sim que atendam às legítimas expectativas de adequação e segurança alimentadas pelo Consumidor, sempre a partir das informações veiculadas pelo Fornecedor, seja na oferta, seja no momento da contratação.
Se não há como se evitar os riscos próprios da sociedade de consumo, o que busca o CDC é assegurar às vítimas de danos a sua devida reparação.
O Dever de Adequação busca tutelar a incolumidade financeira do consumidor, lançando seu foco sobre o equilíbrio econômico patrimonial da relação consumerista. Por essa razão, a violação do dever de adequação dá ensejo à responsabilidade do fornecedor pelo vício do produto ou do serviço - incidente de consumo - disciplinada pelos arts. 18 a 26, do CDC.
Já o Dever de Segurança, busca tutelar a incolumidade psicofísica do consumidor, lançando seu foco sobre a proteção da vida, da saúde e da segurança do consumidor. Por essa razão, a violação do dever de segurança dá ensejo à responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto ou do serviço - acidente de consumo - disciplinada pelos arts. 12 a 17, do CDC.
Nesse ponto, importante esclarecer que defeito e vício não se confundem.
O defeito está relacionado a um acidente de consumo e envolve falha grave na fabricação, concepção ou acondicionamento do bem, capaz de colocar em risco a vida, saúde ou segurança do consumidor. O defeito está relacionado ao dever de segurança e dá ensejo à responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, disposta nos arts. 12 a 17, do CDC.
Já o vício, está relacionado a um incidente de consumo e à inadequação do produto ou do serviço, que não atendem às legítimas expectativas do consumidor, sem, contudo, representar risco à sua integridade física e psíquica. Em outras palavras, embora o produto não funcione adequadamente, não gera maiores riscos à segurança do consumidor. A responsabilidade pelo vício do produto e do serviço está relacionada ao dever de adequação e dá ensejo à responsabilidade pelo vício do produto e do serviço, disposta nos arts. 18 a 26, do CDC. De uma forma simplória, podemos dizer que no vício de adequação, o produto simplesmente não funciona direito.
Essa distinção é fundamental na medida em que cada modalidade de responsabilidade (pelo fato e pelo vício) guarda prazos, sujeitos, requisitos e modalidades de reparação próprios.
Podemos afirmar, portanto, que para o CDC pouco importa se o dever violado encontra-se em um contrato ou não. O que importa é se foi violado um dever de adequação ou um dever de segurança. Isso porque a responsabilidade pelo fato e a responsabilidade pelo vício seguem caminhos normativos completamente distintos. Há casos em que ambas estarão presentes, mas ainda assim, os danos decorrentes de cada uma serão reparados dentro de suas regras próprias.
A grande vantagem do sistema consumerista, em relação ao civil, é que ele dispensa a prova do contrato por parte do consumidor. Ao passo que no Código Civil a prova do contrato é fundamental para a caracterização da responsabilidade contratual, no sistema consumerista o que importa é a comprovação do dano e a perquirição de sua natureza e conteúdo.1 A técnica legislativa consumerista é acertada, pois as relações de consumo são marcadas pelos contatos sociais, contratações de cunho verbal e informal, cuja prova é quase impossível. É o caso dos contratos de transporte urbano de pessoas. O consumidor, ao pagar o preço e passar pela roleta, contrata o serviço de transporte. Nesse caso, não dispõe de qualquer prova da contratação. Fundamental, portanto, a dispensa da prova de contratação na maioria dos casos, bastando a comprovação do dano.
A dependência do Código Civil em relação ao contrato pode ser percebida através da forma como o diploma civilista e consumerista disciplinam a responsabilidade pelo vício do produto e do serviço.
O regime da responsabilidade no Código Civil é baseado na Teoria dos Vícios Redibitórios, a qual exige a existência de um contrato, e somente disciplina o vício oculto (vide art. 441, CCB). Assim, o regime do Código Civil deixa desamparado o adquirente do bem. Por essa razão, exige-se do contratante diligência e zelo no momento da compra, pois não poderá reclamar por vícios aparentes e de fácil constatação depois de assinado o contrato e adquirido o produto. Caso o adquirente não tenha visto um arranhão ou um amassado no produto, no momento da compra, amargará o prejuízo. Infelizmente, o regime liberal do Código Civil ainda tutela o contratante mais esperto, ou seja, aquele diligente, que percebe o vício aparente antes da contratação, ou aquele astuto e desidioso, que desvia a atenção do comprador. Além disso, no regime do Código Civil a indenização é condicionada à má-fé. Em outras palavras, constatado o vício oculto, o Código Civil permite tão somente a redibição do vício - resolução do contrato - ou o abatimento proporcional do preço. A indenização ficará condicionada à demonstração da má-fé do vendedor, que sabia do vício e o omitiu propositadamente. A Teoria dos Vícios Redibitórios foi adotada pelo Código Civil de 1916 e reproduzida, com pequenas alterações, pelo Código Civil de 2002 (arts. 441 a 446).
Por fim, a Teoria dos Vícios redibitórios somente disciplina os vícios ocultos apurados em produtos, não tratando dos vícios apurados em serviços.2
Ocorre que o regime de responsabilidade do código civil é insuficiente para reger e solucionar os problemas ocorridos na seara das relações de consumo. Isso porque na maioria das vezes o consumidor necessita do adimplemento contratual. Imagine-se o caso de um consumidor que teve negado pela sua operadora de plano de saúde o custeio de uma cirurgia, com base em uma cláusula contratual abusiva. Nesse caso específico, se for declarada a abusividade da cláusula em questão, a solução do Código Civil - resolução do contrato e perdas e danos - não lhe seriam úteis, justamente porque ele necessita da tutela específica, ou seja, que a operadora seja obrigada a cumprir o contrato, custeando a cirurgia.
Nas relações de consumo, a resolução contratual pode acarretar grave dano à saúde e à vida do consumidor. Além disso, o Código C ivil não se preocupa com a qualidade do produto, tampouco disciplina diretamente os casos em que este acarreta danos à saúde e à segurança de seu usuário. Importante nesse aspecto observar que Código Civil permite inclusive a estipulação de cláusula de não indenizar, ao passo que o CDC expressamente a proíbe, em seu art. 51, I. Por todas essas razões, a solução dada pela Teoria dos Vícios redibitórios é insuficiente.
Ciente disso, o regime adotado pelo CDC é completamente distinto. De início, podemos observar que o Código Consumerista abrange e tutela tanto os vícios ocultos quanto os vícios aparentes e de fácil constatação (art. 26, CDC). Assim, o consumidor sempre terá o prazo de 30 dias ou 90 dias, para produtos não duráveis e duráveis, respectivamente, para reclamar de vícios aparentes e de fácil constatação. Esse prazo começa a contar de quando o consumidor recebe o produto. Já no caso de vício oculto, os prazos são os mesmos - 30 ou 90 dias -, mas sua contagem somente começa após evidenciado o problema até então oculto (art. 26, § 3º, CDC). Além disso, o diploma consumerista confere o mesmo tratamento/consequência aos vícios em produtos e aos vícios em serviços (arts. 18 e 20, CDC). Nesse aspecto, importante observar que o CDC confere ao consumidor a prerrogativa de exigir tanto o cumprimento forçado do serviço quanto sua reexecução, dentro das condições ofertadas pelo fornecedor e impostas pela boa-fé objetiva e seus corolários.
Pode-se concluir, portanto, que o CDC dá mais valia ao adimplemento contratual, ao passo que o Código Civil, por intermédio da Teoria dos Vícios redibitórios, dá mais valia à redibição. Contudo, vale sempre lembrar que a Teoria dos Vícios Redibitórios poderá ser aplicada nas relações consumeristas, quando mais benéfica ao consumidor, conforme apregoa o Diálogo das Fontes, previsto no art. 7º, do CDC.
1 Cumpre observar que, em alguns casos, o consumidor é dispensado da prova do dano, por ser este presumido. É o caso, por exemplo, da inscrição indevida do nome em cadastros restritivos de crédito. Nesse caso, o dano provém da força dos próprios fatos e, por essa razão, sua demonstração é dispensada. Assim, mesmo que o consumidor não tenha passado por nenhum constrangimento, o fornecedor será obrigado a repará-lo em razão da negativa indevida. Nesse caso, incumbe ao consumidor tão somente a prova de que a negativação foi injusta, por já estar a dívida paga, por não existir contrato etc. Além disso, importante observar o caráter subjetivo e íntimo do dano moral, decorrente do sentimento de humilhação e menos valia em decorrência da negativação indevida. Essa prova é, na maioria dos casos, impossível, pois não há como se comprovar o que passa no ânimo do sujeito. Por essa razão, quando as consequências do ato são fortes o bastante, como é o caso das restrições de estilo decorrentes de uma negativação, tais como restrição de acesso a crediários, bloqueio do cartão de crédito e limitação de acesso a financiamentos e empréstimos, o dano moral é presumido (damnum in re ipsa). Nesse sentido: AgRg no AREsp 124110 SP 2011/0290339-0. 2 Nesse aspecto, as reformas legislativas promovidas em 1994 e 2002, pelas Leis n. 8.952 e 10.444, que introduziram os arts. 461 e 461-A no Código de Processo Civil, trouxeram para as relações civis a possibilidade de saneamento de vícios ocultos em serviços, por meio da determinação da tutela específica ou do resultado prático equivalente pelo juiz.




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