O HOMO SACER IMIGRANTE NA PANDEMIA DE COVID-19
- Raul Maia
- 22 de jun. de 2020
- 6 min de leitura
Eduardo Cambi
Pós-Doutor pela Università degli Studi di Pavia (Itália). Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Universidade Paranaense (UNIPAR). Promotor de Justiça. Coordenador da Escola Superior do Ministério Público do Paraná. eascambi@mppr.mp.br
Letícia de Andrade Porto
Mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Ministério Público e Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR). Estagiária de pós-graduação do Ministério Público do Paraná (MPPR). leticia.porto21@gmail.com
Área do Direito:
Internacional; Direitos Humanos
Na contemporaneidade, as diversas diásporas ocorridas em muitos lugares do mundo colocam em xeque uma série de tratativas internacionais, quanto à eficácia e à possibilidade de pôr em prática os direitos humanos de refugiados e migrantes. Ondas de migração, como as ocorridas do Oriente Médio e da África para a Europa, da América Central para os Estados Unidos e, mais recentemente, da Venezuela para Colômbia e para o Brasil, têm causado tensões sociais e constantes inseguranças para cidades, estados e até países inteiros.
Ao final de 2018, quase 70,8 milhões de pessoas deixaram seus países de origem por conta de deslocamento forçado por conflitos1. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM) estimam que mais de 4 milhões de venezuelanos estejam em condição de refugiados e migrantes2, número expressivo que coloca a Venezuela como o segundo país do mundo com maior fluxo migratório.
A situação de emergência humanitária leva crianças, adolescentes e adultos a migrarem em busca de comida, serviços de saúde e de trabalho. O grande número de migrantes venezuelanos que busca auxílio no Brasil tende a morar nas ruas em razão da falta de estrutura local, que não comporta o repentino e intenso fluxo de migrantes, denunciando a precária situação em que vivem quando atravessam a fronteira brasileira em Roraima, na cidade de Pacaraima. Os migrantes em situação de rua desafiam ainda mais a emergência humanitária em razão da atual pandemia de COVID-19, que ataca com maior intensidade as pessoas mais vulneráveis, dentre as quais aquelas que estão à mercê dos Estados acolhedores.
Em se falando das dificuldades enfrentadas quando da imigração, Giorgio Agamben trabalha com a ideia de Homo Sacer, a partir do conflito entre sacralidade e soberania34. A figura do Homo Sacer, que tem sua origem no poder político e jurídico ocidental, é caracterizada pela fragilidade de uma vida abandonada pelo Direito, à mercê da vontade soberana que pode suspender a ordem e o direito. Essa fragilidade é demonstrada em virtude da captura da vida humana dentro da sociedade condizente à exceção soberana, tornando a vida “intrinsecamente frágil e permanentemente vulnerável”5. O grande paradoxo repousa na figura do soberano, que, ao mesmo tempo que deve prover a ordem e o direito, pode ameaçá-los, negando os direitos de uma parcela da população, separando-a da sociedade6.
A figura do Homo Sacer pode ser comparada às milhares de pessoas que se vêem obrigadas a migrar em razão de conflitos civis e políticos, à mercê dos soberanos dos países de acolhida. Em razão da quantidade massiva de migrantes, e da maior periodicidade das ondas de migração, os países de destino buscam a construção de campos de refúgio, onde se busca realizar operações humanitárias. Aliás, é possível apontar um paradoxo na noção de campo de refugiados, equiparando-os com os campos de concentração nazistas, na dimensão da biopolítica moderna. Agamben explica que a “biopolítica moderna provoca um alargamento progressivo da soberania para além dos limites do estado de exceção”7.
A linha imaginária que divide o Estado de Direito e o estado de exceção direciona-se para a vontade do soberano em controlar a vida humana, reduzindo-a à mera vida nua. Sob essa perspectiva, o Estado de Direito não aboliu completamente a vontade soberana, mas, sim, ocultou-a, para prevalecer, quando preciso, da figura jurídica do estado de exceção. É possível vislumbrar a figura dos refugiados nas contradições biopolíticas atuais, pois tais pessoas são destituídas de direitos políticos do Estado-nação, ficando mais suscetíveis a abusos e violências. A cidadania - sintetizada na expressão “direito a ter direitos” de Hannah Arendt - é questionada pelo Estado acolhedor, que, não raramente, deixa de reconhecer o migrante como seu cidadão, expondo-o a mera vida nua8.
A situação vivida por refugiados no campo de Moria, na Ilha Grega de Lesbos, ilustra a exposição de pessoas à vida nua. Nessa localidade, os índices de violência são considerados mortais9. Também se noticia o aumento de doenças respiratórias ocasionadas pelo contato com o gás lacrimogêneo, lançado pela polícia para apartar brigas dentro do campo. No início de abril, já havia notícias de mortes por COVID-19 dentro dos campos de refugiados gregos. As condições sanitárias insalubres, aliadas à superlotação e à negligência do Estado Grego em fornecer acesso ao sistema de saúde, convergem para uma crise sanitária sem precedentes nesses campos de refugiados10.
O mundo já enfrentou outras crises sanitárias, de menores proporções, com o SARS (2002), H1N1 (2009) e Ebola (2014). Nesse quesito, a Agência da ONU para Refugiados - ACNUR tem trabalhado em ações para frear a disseminação do COVID-19 em campos de refugiados pelo mundo, com base nas antigas experiências adquiridas com as crises sanitárias anteriores. O ampliação de acesso à informação sobre a doença, a distribuição de kits emergenciais de higiene e limpeza, a construção de uma área com 1.200 leitos para tratamento dos casos confirmados e/ou suspeitos, e o monitoramento de fronteiras e aeroportos têm sido algumas das ações emergenciais empreendidas pela ACNUR na região de Pacaraima, fronteira do estado de Roraima com a Venezuela11.
Em abril de 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) expediu a Resolução nº 01/2020, que trata sobre a pandemia de COVID-19 e a necessidade de proteção das pessoas em situação de especial vulnerabilidade na América Latina, como aquelas privadas de liberdade, mulheres, indígenas, migrantes e/ou refugiadas, crianças e adolescentes, LGBTI, afrodescendentes e pessoas com deficiência. Quanto aos migrantes e refugiados, em especial, devem ser evitadas situações que culminem em aglomerações, como a detenção migratória, deportações ou exclusões coletivas. Além disso, mecanismos de liberação das pessoas que se encontram em centros de detenção, assim como medidas que permitam o livre trânsito dos indivíduos que estejam buscando o acesso às políticas, serviços e programas de combate ao COVID-19 devem ser implementadas pelos Estados americanos12.
No entanto, o acesso à informação, por si só, não garante ao imigrante ou ao refugiado a proteção contra a doença. As condições de uma vida digna, com mantimentos, acesso à saúde e distanciamento social são os principais desafios em campos de refugiados superlotados, precários e alheios aos serviços públicos essenciais. A população imigrante em situação de rua também esbarra nos mesmos problemas, ante a falta de higiene, alimentação e cuidados básicos com a saúde. Os esforços empreendidos para a proteção dos imigrantes e refugiados nunca foram tão preciosos como no momento atual, que converge no ponto de encontro de uma crise humanitária internacional em tempos de uma pandemia que desafia o mundo e castiga a população mais vulnerável.
1 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Global Trends: Forced Displacement in 2018. Acesso em: 19 fev. 2020. Disponível em: https://www.unhcr.org/globaltrends2018/ 2 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Número de refugiados e migrantes da Venezuela ultrapassa 4 milhões, segundo o ACNUR e a OIM. Genebra, 7 jun. 2019. Agência da ONU para refugiados. Acesso em: 27 fev. 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2019/06/07/numero-de-refugiados-e-migrantes-da-venezuela-ultrapassa-4-milhoes-segundo-o-acnur-e-a-oim/ 3 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I. 1. jn. 2010. Humanitas. Editora UFMG. 4 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 5 RUIZ, Castor. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. IHU on-line. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 29 de agosto de 2011, ed. 371. p. 40-42. 6 Ibid. 7 Ibid. 8 Ibid. 9 MÉDICOS SEM FRONTEIRAS. Projetos MSF: Grécia. Acesso em: 20 fev. 2020. Disponível em: https://www.msf.org.br/projetos-msf/grecia 10 MÉDICOS SEM FRONTEIRAS. MSF alerta para uma catástrofe se COVID-19 atingir campos de refugiados na Grécia. 20 mar. 2020. Acesso em: 9 abr. 2020. Disponível em: https://www.msf.org.br/noticias/msf-alerta-para-uma-catastrofe-se-covid-19-atingir-campos-de-refugiados-na-grecia 11 NAÇÕES UNIDAS - BRASIL. Coronavírus e refugiados: o que a ACNUR está fazendo no Brasil e no mundo. 31 mar. 2020. Acesso em: 9 abr. 2020. Disponível em: https://nacoesunidas.org/coronavirus-e-refugiados-o-que-o-acnur-esta-fazendo-no-brasil-e-no-mundo/ 12 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Pandemia y Derechos Humanos en las Américas. Resolución 01/2020. Acesso em: 11 abr. 2020. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf




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