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LEGALIDADE, CIDADANIA E DEMOCRACIA POSTAS EM XEQUE POR NOTIFICAÇÃO RECOMENDATÓRIA

LEGALIDADE, CIDADANIA E DEMOCRACIA POSTAS EM XEQUE POR NOTIFICAÇÃO RECOMENDATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, ACIDENTES DE TRÂNSITO E COOPERATIVAS DE TRABALHO.

Antonio Carlos Aguiar Doutorando e mestre pela PUC São Paulo. Professor titular de Direito do Trabalho da Fundação Santo André. Advogado. André Villac Polinesio Mestre pela PUC São Paulo. Advogado. Área do Direito: Trabalho


"Acidentes de trânsito matam ou ferem três por hora na capital paulista", revela manchete da UOL Notícias de 15 de julho de 2015.

Segundo dados da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, observa-se que no ano passado (2014) 26.635 pessoas se feriram ou morreram no trânsito da capital. Em 2014 o trânsito matou 1.249 pessoas. O editorial de 17 de julho de 2015, do jornal Estado de S. Paulo, noticiou que o chefe do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da Associação Brasileira de Médicos de Tráfego, Dirceu Rodrigues Alves Júnior, classifica como assustadora esta estatística. Alguma coisa (muito séria) precisa ser feita.

E com urgência.

É inadmissível que essa tragédia (assustadora) prossiga. Que famílias fiquem arrasadas. Crianças órfãs. Que a sociedade suporte gastos medicinais e hospitalares gigantescos, que poderiam ser revertidos e destinados a outros problemas médicos, ainda mais severos e fora de controle. Não se pode conceber que uma máquina rodante inanimada, não importa sob qual forma se materialize: na couraça de um caminhão; de um trator; de um automóvel; de uma motocicleta; ou qualquer outro monstro tecnológico sobre rodas, goze deste tipo incólume de licenciosidade para ceifar vidas humanas, aja como se tivesse uma licença para matar concedida pelo Estado.

Precisa-se, de modo incontinente e exemplar, dar um basta nesse absurdo. A solução não é difícil. É até bem simples. Deve-se, desde já, proibir que essas máquinas circulem livremente entre os seres humanos. As vias públicas, avenidas, ruas, travessas e/ou qualquer outro local onde hoje elas têm livre passagem devem ser interditados a sua ampla mobilidade. Somente pessoas terão acesso a esses lugares. Apenas os humanos poderão - em segurança - circular e caminhar livremente nesses espaços públicos. Conforto, segurança, ar puro e convívio social serão as palavras de ordem e congratulação desses novos e alvissareiros tempos de liberdade de ir e vir. Tudo longe dessas ameaçadoras máquinas mortíferas rodantes.

E mais: se acontecer, por algum infortúnio, de uma dessas máquinas se atrever a descumprir essa ordem, que então feche, de vez, as fábricas que as produzem. Fechadas, lacradas e inativas, nunca mais enviarão à sociedade esses verdadeiros entes perigosos. Para implantação desta salutar medida basta uma notificação recomendatória.

Por óbvio, uma drástica (e insensata) medida como esta não tem nenhuma pertinência urbana, social ou séria para resolução desta grave realidade. Vários outros são os fatores que geram as fatalidades derivadas dos acidentes de trânsito. Todos - registre-se - advindos da atuação do próprio ser humano. Eles não acontecem inadvertidamente sob a prática e graça das máquinas inanimadas de maneira autônoma. Derivam, a bem da verdade do desrespeito às mais comezinhas regras de segurança de trânsito; ausência de políticas públicas sérias e educativas (em vez de investimentos na indústria das multas); imprudência dos pedestres; políticas eleitoreiras em vez de sociais no que comporta aos ciclistas; pressão financeiro-produtiva (irresponsável) junto à mobilidade - também irresponsável - desenvolvida por motoboys (cada vez mais premidos pelo tempo, o que faz com que atuem de modo tresloucado no trânsito para cumprir esses novos compromissos, circulando pela contramão, calçadas, entre os carros e muito mais); situação que torna imperioso que a discussão e estudo sobre a natureza e inserção preventiva sobre o tema se faça de maneira séria e responsável, e não perpasse por argumentos e/ou atitudes perfunctórias.

Os responsáveis não são as máquinas, mas, sim, aqueles que as gerem mal e inadequadamente. Logo, para outras situações/discussões sobre temas críticos, a lógica a ser utilizada tem de ser exatamente a mesma. A verificação da raiz do problema; não a superficialidade de seus efeitos. A solução deve, por isso mesmo, enfrentar, de maneira complexa, as razões e motivações da sua existência. Respostas rápidas e superficiais, que não enfrentam de frente a questão devem ser afastadas. Isso parece claro, não?

Todavia, na prática, a cada dia o que se vê não é bem isso. É algo bem diferente.

Neste sentido, trazemos à baila um exemplo muito ilustrativo.

O Ministério Público do Trabalho (constitucionalmente capacitado para ser o Fiscal da Lei) está emitindo uma inusitada "Notificação Recomendatória", direcionada às empresas, com a ameaça de responsabilização criminal e trabalhista - inclusive de seus gestores, uma vez que são eles nominalmente notificados -, para o caso de contratação de cooperativas intermediadoras de mão de obra. Eis o que manda a notificação:

"Abster-se de contratar cooperativas intermediadoras de mão de obra. Rescindir eventuais contratos com cooperativas intermediadoras de mão de obra.

(...)

Prazo de 60 (sessenta dias) do recebimento desta."

Abster-se de contratar com quem jurídica e legalmente tem capacidade plena de relacionar-se contratualmente. Com isso, se evitaria que alguém descumprisse a Lei e contratasse com outro de modo fraudulento. Não é o mesmo que proibir a circulação de veículos motores para evitar acidentes de trânsito?

Pergunta-se: existem cooperativas fraudulentas? Sim, existem.

Mas a pergunta jurídica e democrática que deve ser feita não é essa. Aliás, são outras duas: (i) existe previsão (possibilidade jurídica) legal para contratar regularmente uma cooperativa de trabalho? A resposta é: sim. (ii) Existem cooperativas de trabalho sérias e devidamente regularizadas, juridicamente estabelecidas, sob orientação e fiscalização do Estado? Outra vez, a resposta é afirmativa.

Como, então, o órgão, que constitucionalmente tem como atribuição de ser o Fiscal da Lei, pode mandar descumprir o ordenamento jurídico-legal?

Para essa pergunta não se tem resposta.

O exercício desta atribuição constitucional não comporta desvios. Eventual desvirtuamento implica desrespeito aos mais elementares ícones constitucionais, como o Princípio da Segurança Jurídica.

O simples fato de que alguém (ou alguma cooperativa) possa agir de maneira fraudulenta, não autoriza concluir-se que todos agirão do mesmo modo. Muito menos que o instituto está original e embrionariamente maculado pela fraude.

O que gravita e se materializa por intermédio desta notificação recomendatória é a criação de um mecanismo alquímico e torto que tem o intuito de transformar em letra morta toda a redação incrustada na legislação que dispõe sobre o tema, devidamente criada por quem, jurídica e constitucionalmente, detém poderes para tanto, que é o Poder Legislativo, como se vê junto à lei que regulamenta a atividade das cooperativas1, assim como no dispositivo expresso na Consolidação das Leis do Trabalho2, que admite a contratação de cooperativados.

Não se discute aqui a preocupação e as boas intenções que podem ter pautado essa notificação recomendatória do Ministério Público do Trabalho. Aliás, convém elogiar sua atuação ativa e corajosa ao longo dos últimos anos, em especial, após a promulgação da Carta de 1988. Contudo, o que se espera (constitucionalmente) dos entes jurídicos (incluam-se aqui Ministério Público e Judiciário) é previsibilidade na sua atuação e prolação de decisões. Tudo sempre dentro da Lei.

Como perfeitamente enfatiza Lenio Streck, a legalidade deve ser entendida como um conjunto de operações do Estado que é determinado não apenas pela Lei, mas também pela Constituição - uma vez que seria um contrassenso afirmar uma legalidade que não manifestasse a consagração de uma constitucionalidade - e pela efetividade das decisões judiciais 3 sob o marco de uma legitimidade democrática. Mais do que isso: legalidade implica a formação de um espaço público de tomada de decisões num âmbito estatal específico e na capacidade de tornar efetivas tais decisões. Ou seja, legalidade é uma forma de se construir o espaço público de maneira que se possa dizer que ele esteja tomado por ela; é um fenômeno complexo, para onde confluem as noções de cidadania e democracia; é o momento em que o espaço público é efetivamente público e não colonizado por interesses privados. Nessa perspectiva, podemos dizer que a legalidade determina a "força" que um Estado tem, e não o peso e tamanho de seu aparelho burocrático. Evidentemente, estamos falando de legalidade, cidadania e democracia, essa "força" não é determinada pelo grau de coerção que o Estado imprime sobre os indivíduos, numa espécie de relação entre súdito e soberano, mas sim de uma "força" que se determina a partir da legitimidade que as ações do Estado alcançam sobre cada um dos cidadãos 4.

Sendo assim, é obrigatória (sempre) e imprescindível uma análise individualizada, caso a caso, para verificação concreta e juridicamente serena, no que comporta as relações contratuais mantidas com as cooperativas, antes de tê-las como fraudulentas. Não existe presunção de culpabilidade. A Constituição pauta-se exatamente no contrário: a presunção de inocência. E mais: todos nós temos consciência legal de que fraude não se presume. Prova-se.

Desta maneira, não podemos confundir boas intenções com boas práticas legais. Mesmo que se pretenda a guisa de se justificar as primeiras, se valer de princípios em vez de regras, deve-se tomar muito cuidado para que não prevaleça o voluntarismo, em detrimento do juridicamente correto, sob o pretexto de sustentar simples posicionamento. Não há como pretender se utilizar de princípios (e ultimamente eles se espraiam a cântaros) para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais. Toda interpretação tem de ser conforme. Tem de guardar fidelidade à Constituição. Tem de resguardar direitos constitucionais, como a ampla defesa; livre iniciativa; devido processo legal. Dentro desta preservação inserem-se ainda: a boa-fé dos contratos; ato jurídico perfeito; função social dos contratos; valoração social do trabalho; legalidade dos contratos cooperados.

Uma vez mais: previsibilidade na atuação. O princípio da segurança jurídica encontra-se intensamente relacionado ao Estado Democrático de Direito. Ele é inerente e essencial a sua subsistência. Uma das pilastras mestras à sua sustentação. Possui conexão direta com os direitos fundamentais.

O excesso demonstrado junto aos dois exemplos aqui trazidos (um fictício e o outro - infelizmente - real) enfrenta equivocadamente esse princípio. Torna-se dele um inimigo dileto e atento. A segurança jurídica, por isso mesmo, não admite tergiversações. É obrigatória.

Miguel Reale, discorrendo acerca da obrigatoriedade ou a vigência do Direito, afirma que a ideia de justiça liga-se intimamente à ideia de ordem. No próprio conceito de justiça é inerente uma ordem, que não pode deixar de ser reconhecida como valor mais urgente, o que está na raiz da escala axiológica, mas é degrau indispensável a qualquer aperfeiçoamento ético.5

Afirma, ainda, que segundo postulado da ordem jurídica positiva: em toda comunidade é mister que uma ordem jurídica declare, em última instância, o que é lícito ou ilícito.6

Nesta mesma linha de consideração e consolidação de entendimento, Carlos Aurélio Mota de Souza, destaca que a segurança está implícita no valor da justiça, sendo um 'a priori' jurídico.

Destaca: se a lei é garantia de estabilidade das relações jurídicas, a segurança se destina a estas e às pessoas em relação; é um conceito objetivo, a priori, conceito finalístico da lei 7.

Dentro deste espaço de atuação e preservação de direitos, encontra-se justamente o presente estudo, que visa, em linhas sucintas, porém de maneira enfática, lembrar que o Ministério Público do Trabalho deve evitar o desvirtuamento de sua finalidade, concentrando seus esforços naquilo que efetivamente lhe compete, ou seja, "a defesa da ordem jurídica e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, nos termos dos arts. 127 e 129 da Constituição Federal de 1988", atuando, todavia, para traçar esse caminho, nos exatos trilhos da legalidade e do devido processo legal.

Lembremos: o caminho a ser seguido deve ser isento, pois "é na superfície de contato entre dois meios diferentes que a luz se reflete, refrata, converge, estimula o nervo ótico, forma a imagem e nós vemos; as coisas importantes acontecem na fronteira entre as coisas"8.

1 Lei nº 5.764/71 e artigos 1.093 a 1.096, do Código Civil. 2 CLT, artigo 442. 3 Ver, nesse sentido, Diaz, Elias, Estado de derecho y Derechos Humanos. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, Ano 1, n. 1, jun. 1995, p. 16. 4 STRECK, Lenio Luiz. Compreender DIREITO. Desvelando as obviedades do discurso jurídico. Thomson Reuters. Revista dos tribunais. São Paulo. 2013. 2ª Tiragem. P. 77. 5 Miguel Reale, Lições preliminares de direito (1998), p. 171. 6 Miguel Reale, Filosofia do Direito. São Paulo. Saraiva, 1996. 7 Carlos Aurélio Mota de Souza, Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico jurídico, São Paulo, LTr, 1996, pág. 128. 8 Avner Treinin, um dos principais poetas de Israel, é também um distinto químico físico. (Ensaio das dualidades).

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