LEGADOS DA COVID-19 ÀS RELAÇÕES TRABALHISTAS BRASILEIRAS
- Raul Maia
- 10 de set. de 2020
- 26 min de leitura
Atualizado: 2 de out. de 2020
Área do Direito: Trabalho Resumo: A pandemia do novo coronavírus deixou legados às relações trabalhistas brasileiras. As normas heterônomas estatais paradoxalmente não protegem os trabalhadores autônomos economicamente dependentes. O modelo sindical corporativista deve ceder espaço para a liberdade sindical a fim de que haja representatividade dos trabalhadores e credibilidade social. As lides relacionadas à pandemia da Covid-19 devem ser decididas com parcimônia e de maneira fundamentada, evitando-se o agravamento dos conflitos sociais, oportunidade de remodelagem da relação de emprego, propiciando a complementariedade entre capital e trabalho para superação solidária da crise. Palavras-chave: Covid-19 – Legados – Relações trabalhistas – Autônomo – Liberdade Sindical – Ativismo Judicial – Democracia e Dignidade Humana Abstract: New coronavirus pandemic left legacies to Brazilian labor relationships. Labor legislation issued by Brazilian government does not protect self-dependent workers. Unions are subjected to Brazilian government restrictions and union freedom is needed to recover workers’ representativeness and social trustworthiness. Brazilian Labor Courts shall avoid judicial activism to decide labor lawsuits involving Covid-19 liabilities. It will be an opportunity to remodel employment relationship to overcome economic crisis. Keywords: Covid-19 – Legacies – Labor Relations – Self-employed – Union Freedom – Judicial Activism – Democracy and Human Dignity Sumário: Introdução
Introdução
Quando a pandemia do novo coronavírus (“Covid-19”) chegou ao Brasil, ainda estávamos num processo de amadurecimento dos novos institutos trazidos pela Lei 13.467, de 13 de julho de 2017 (“Reforma Trabalhista de 2017”), que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017.
Discutíamos temas como a terceirização de atividade-fim, o novo conceito de grupo econômico, a responsabilidade do sócio retirante, a extinção da contribuição sindical obrigatória, a prevalência do negociado sobre o legislado, o contrato de trabalho de empregado autossuficiente, honorários advocatícios de sucumbência, desconsideração de personalidade jurídica, a distribuição dinâmica do ônus de prova, dentre outros.
Em 06 de fevereiro de 2020, foi publicada a Lei 13.979/2020, que dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19. Em seguida, foi editado o Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020 (LGL\2020\2715), reconhecendo o estado de calamidade pública em razão da Covid-19.
A pandemia da Covid-19 causou uma profunda transformação nas relações sociais, deslocando momentaneamente os holofotes do Direito do Trabalho para as normas de saúde e segurança do trabalho, e medidas econômicas e sociais para a preservação de emprego e renda dos trabalhadores, notadamente com a edição a edição das Medidas Provisórias 927, de 20 de março de 2020 (“MP 927”) – que vigeu até 19 de julho de 2020, pois não foi convertida em lei – e 936, de 1º de abril de 2020 (“MP 936”), sendo esta, posteriormente convertida na Lei 14.020, de 6 de julho de 2020.
Em poucos meses de pandemia da Covid-19, houve uma enxurrada de artigos em revistas e jornais, webinars e lives a respeito das medidas trabalhistas de enfrentamento da crise. Sem a pretensão de esgotar o tema, nos dedicaremos nesse breve artigo a introduzir uma discussão acadêmica sobre os possíveis legados deixados pela pandemia às relações trabalhistas brasileiras pós Covid-19, observadas as adversidades do momento atual e as nossas “brasilidades”.
1. O paradoxo de normas trabalhistas quantitativamente protetivas, mas qualitativamente excludentes
A doutrina classifica as fontes do Direito do Trabalho em formais e materiais. As fontes materiais representam os fatos econômicos, sociais e políticos da sociedade, num determinado momento de sua história, que contribuem para a elaboração das leis. Por seu turno, as fontes formais são as próprias normas jurídicas trabalhistas, as quais se subdividem em heterônomas ou autônomas, quando elaboradas por terceiros ou pelos próprios partícipes da relação jurídica, respectivamente. As fontes formais heterônomas são as normas de origem estatal, as sentenças normativas prolatadas pela Justiça do Trabalho e as sentenças arbitrais. As fontes autônomas são os acordos ou convenções coletivas de trabalho, os costumes e os regulamentos empresariais.1
Para os fins desse breve artigo, faremos um recorte epistemológico e nos concentraremos nas fontes heterônomas de origem estatal que regulamentam as relações individuais no Direito do Trabalho.
Como é cediço, as normas estatais de Direito do Trabalho foram criadas com o objetivo precípuo de tutelar e proteger a vida, a saúde e a dignidade do trabalhador, criando regras de caráter imperativo ou cogente para limitar aos poderes do empregador no âmbito da relação jurídica havida entre as partes.2
No Brasil, a principal fonte heterônoma estatal que regulamenta as relações individuais no âmbito do Direito do Trabalho é a Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT (LGL\1943\5)” ou “Consolidação”), aprovada em 1º de maio de 1943, diploma que sofreu ao longo dos anos diversas modificações, sendo as mais importantes aquelas realizadas pela Reforma Trabalhista de 2017.
O artigo 1º estabelece que a Consolidação “estatui as normas que regulam as relações individuais e coletivas de trabalho, nela previstas”. Os sujeitos da relação individual de trabalho tutelados pela Consolidação são o empregado e o empregador. Considera-se empregado a pessoa natural que presta serviços “de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário”, na forma do art. 3º, da CLT (LGL\1943\5). Já o empregador é toda pessoa natural ou jurídica que, “assumindo os riscos da atividade econômica, admite e dirige a prestação do serviço” (caput, do art. 2º, da CLT (LGL\1943\5)), equiparando-se ao empregador para os efeitos da relação de emprego “os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados” (§ 1º, do art. 2º, da CLT (LGL\1943\5)).
A CLT (LGL\1943\5) fornece ao trabalhador, diversos direitos trabalhistas, dentre os quais destacamos, exemplificativamente: (a) a fixação de jornada de trabalho, em regra não superior a 08 horas diárias ou 44 semanais (art. 58); (b) o descanso semanal remunerado (art. 66), (c) o salário mínimo (art. 76), (d) o direito a férias anuais remuneradas com acréscimo de 1/3 (art. 129), (e) o fornecimento de equipamentos de segurança e tutela da saúde no trabalho (inciso I, do art. 157 e arts. 166 e 168), (f) os adicionais de insalubridade e periculosidade (arts. 189 e 193) e (g) o aviso prévio proporcional ao tempo de trabalho (art. 487).
Ao rol citado acima, somam-se outros direitos trabalhistas concedidos aos empregados em leis esparsas, como, por exemplo: (a) a gratificação natalina (Leis 4.090, de 13 de julho de 1962 e 4.749, de 12 de agosto de 1965), (b) os depósitos no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (Lei 8.036, de 11 de maio de 1990 e Decreto 99.684, de 08 de novembro de 1990 (LGL\1990\13)), (c) o vale transporte (Lei 7.418, de 16 de dezembro de 1985 e Decreto 95.247, de 17 de novembro de 1987 (LGL\1987\3)) e (d) seguro desemprego (Lei 7.998, de 11 de janeiro de 1990).
Contudo, o generoso rol de direitos trabalhistas individuais, oriundo de fontes heterônomas estatais, só se aplica aos “empregados” definidos no art. 3º da CLT (LGL\1943\5), e não de maneira indistinta a todos os trabalhadores.
Isto porque, o artigo 442-A da CLT (LGL\1943\5) estabelece que a contratação do trabalhador autônomo, cumpridas as formalidades legais (ou seja, agentes capazes, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei), afasta a qualidade de empregado e, por conseguinte, retira o trabalhador autônomo da tutela e da proteção do texto Consolidado. Essa assertiva é reforçada pela leitura dos arts. 593 a 609, todos do Código Civil (LGL\2002\400) (“CCB”), que regulamentam o contrato de prestação de serviços de pessoas naturais ou jurídicas não abrangidas pela CLT (LGL\1943\5).
A realidade atual do mercado de trabalho brasileiro – e, provavelmente, da maioria dos países do mundo – é a de uma gama imensa de trabalhadores informais que se encontram à margem da proteção do Direito do Trabalho. Essa metamorfose no mercado de trabalho ocorreu, principalmente, com a globalização e a revolução tecnológica (inclusive, mais recentemente, com os trabalhos em plataformas digitais).
O trabalhador autônomo, assim como o empregado, muitas vezes, depende economicamente da prestação de serviços para garantir sua subsistência, e também se sujeita ao poder econômico do tomador de serviços, mas, a lei trabalhista, ao invés de tutelá-lo e protegê-lo, vira-lhe as costas e o relega às regras do CCB para “negociar” seus direitos, como se “negociação” de fato houvesse. A autonomia privada inerente às relações civis, mas tão mitigada no âmbito trabalhista, só ocorre se houver liberdade. A liberdade só existe se houver igualdade. E não há igualdade onde existe dependência econômica de uma parte em relação à outra. Logo, o trabalhador autônomo economicamente dependente de seu tomador de serviços sempre estará vulnerável na relação jurídica e, por sua dependência econômica, é hipossuficiente e deveria ser tutelado por normas estatais de proteção do Direito do Trabalho.
A CLT (LGL\1943\5), principal fonte heterônoma estatal de direitos trabalhistas individuais, só nos permite enxergar duas realidades dicotômicas: ou o trabalhador é empregado, com todos os direitos legalmente previstos, ou trabalhador é autônomo, sem acesso a nenhum destes direitos.
Eis aqui um paradoxo do Direito do Trabalho no Brasil dos dias de hoje, porquanto temos normas trabalhistas heterônomas de origem estatal quantitativamente protetivas aos empregados, mas qualitativamente excludentes dos demais trabalhadores autônomos ou informais. Maurice Cohen, citado na obra de Arion Sayão Romita, já dizia desde a década de 90 que “à medida que aumenta o volume do Código de Trabalho, reduz-se o número de pessoas às quais ele se aplica”3.
Não se trata de defender a aplicação da CLT (LGL\1943\5) e, por conseguinte, de todos os direitos nela previstos, a todos e quaisquer trabalhadores autônomos, mas a necessidade de uma revisão das normas trabalhistas, especialmente após a crise econômica causada pela Covid-19, a fim de que a proteção heterônoma estatal das relações individuais de trabalho se estenda aos trabalhadores autônomos economicamente dependentes dos seus tomadores de serviços – como ocorre na Espanha4, por exemplo – face à vulnerabilidade subjacente da relação jurídica e do próprio papel histórico do Direito do Trabalho.
Como bem observam Francisco Pedro Jucá e Mércio Hideyoshi Sato, “não basta tutelar situações individuais. É preciso ir além, entendendo que é o Direito do Trabalho e não apenas do emprego”5.
E a extensão da proteção ao trabalhador autônomo economicamente dependente justifica-se tendo em vista o Estado Democrático de Direito instaurado no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e a constitucionalização das relações privadas (§ 1º, do art. 5º, da Constituição).
São fundamentos da República Federativa do Brasil a democracia e os direitos fundamentais. Dentre os direitos fundamentais estão a dignidade da pessoa humana (inciso III, do art. 1º), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV, do art. 1º), e a erradicação da pobreza e da marginalização social (inciso III, do art. 3º), de sorte que possamos constituir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I, do art. 3º).
Mesmo sendo a dignidade da pessoa humana fundamento do Estado de Direito brasileiro, talvez tenhamos apequenado a sua importância ao excluir o trabalhador autônomo da proteção inerente ao Direito Trabalho.
A dignidade é ontológica, e não contingente, pois todos possuem a mesma dignidade. E esta dignidade possui dupla dimensão, pois ao mesmo tempo em que se consubstancia na liberdade de tomada das decisões fundamentais da vida, também funciona como limite a fim de impedir que as escolhas não coloquem as pessoas em condições ou situações indignas.6
Ora, se todos os trabalhadores são iguais em dignidade; se a dignidade se traduz em respeito e promoção do mínimo existencial; e se o mínimo existencial provém dos frutos materiais e imateriais que o trabalho pode proporcionar ao ser humano, retirar dos trabalhadores autônomos economicamente dependentes direitos trabalhistas mínimos, é por via oblíqua, diminuir-lhes a dignidade humana na sociedade contemporânea.
O artigo 6º, caput da CF (LGL\1988\3), reconhece o trabalho como um direito fundamental social. E a própria Constituição Federal erigiu o valor social do trabalho como fundamento do Estado de Direito. É inegável o valor dos serviços do trabalhador autônomo economicamente dependente na sociedade moderna. Este trabalho autônomo propicia, a um só tempo, a subsistência do trabalhador e de sua família, além de gerar a circulação da riqueza na sociedade, propiciando a arrecadação de tributos.
E, a despeito de alguns incisos do artigo 7º, da Constituição Federal, fazerem referência expressa a direitos trabalhistas devidos a empregados celetistas, o caput desse artigo se destina aos trabalhadores urbanos e rurais, sem fazer qualquer distinção quanto à natureza da relação jurídica. Prova disso é a extensão de todos os direitos trabalhistas constitucionais do artigo 7º, aos trabalhadores avulsos, conforme inciso XXXIV.
Em tempos de pandemia da Covid-19, os trabalhadores autônomos economicamente dependentes dos tomadores de serviços foram prejudicados e marginalizados socialmente. Restou a eles apenas o auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 mensais, menos de 60% do salário mínimo nacional, conforme disposto na alínea “c”, do art. 2º, da Lei 10.316, de 07 de abril de 2020. Trata-se de valor emergencial, é verdade, mas em patamar que não garante a subsistência digna do trabalhador e de sua família.
Se quisermos uma sociedade fraterna, com erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais, tal como consta dos fundamentos da Constituição Federal, numa perspectiva promocional dos direitos fundamentais, não podemos fechar os olhos à realidade que nos foi escancarada com a pandemia da Covid-19. Excluir os trabalhadores autônomos economicamente dependentes da proteção inerente às normas heterônomas estatais é negar as próprias origens do Direito do Trabalho e caminhar na contramão dos valores da sociedade brasileira contemporânea.
Para evitar a insegurança jurídica decorrente de eventual ativismo judicial na promoção dos direitos fundamentais no âmbito da Justiça do Trabalho – outro ponto sensível que trataremos mais adiante – é importante que a pandemia nos sirva de lição para acelerar o processo legislativo de aprovação de uma lei, que regulamente de forma esparsa ou na própria CLT (LGL\1943\5), direitos trabalhistas mínimos para proteger os trabalhadores autônomos economicamente dependentes.
Preferencialmente, a concessão de direitos sociais aos trabalhadores autônomos economicamente dependentes deve ser feita sem que haja, em contrapartida, a diminuição dos direitos dos celetistas, face ao princípio da proibição do retrocesso social, previsto no caput, do art. 7º da Constituição Federal.
Entretanto, não podemos ignorar o desemprego e a escassez de recursos financeiros, públicos e privados, em razão da crise econômica causada pela pandemia da Covid-19. O socialmente desejável pode não ser economicamente viável, pois os recursos são limitados.
Destarte, se, para reduzir a marginalização social mediante a concessão de direitos trabalhistas básicos aos trabalhadores autônomos economicamente dependentes, momentânea e excepcionalmente, o Poder Legislativo tiver que reduzir o leque de direitos – não fundamentais – dos trabalhadores celetistas, que o faça a partir do princípio da reserva do possível, previsto no inciso I, do art. 2º, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil através do Decreto 591, de 06 de julho de 1992 (LGL\1992\37), atendando-se apenas à necessidade de preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais de todos.7
2. Uma grande derrota e um belo aprendizado: caminharemos para a liberdade sindical e verdadeira representatividade?
A despeito de os trabalhadores e as empresas não serem obrigados a se associarem ou a permanecerem associados aos sindicatos (inciso XVII, do art. 5º e inciso IV, do art. 8º, ambos da Constituição) e de os sindicatos não estarem sujeitos à intervenção ou interferência do Estado (inciso I, do art. 8º, da Constituição), não temos a plena liberdade sindical no Brasil.
Não podemos falar em plena liberdade sindical tendo em vista os resquícios do modelo corporativista de organização sindical, quais sejam: (a) a unicidade sindical (inciso II, do art. 8º, da Constituição e art. 516, da CLT (LGL\1943\5)), (b) a base territorial mínima (inciso II, do art. 8º, da Constituição), (c) sindicalização por categoria (arts. 511 e 570, da CLT (LGL\1943\5)) e (d) o sistema confederativo de organização (sindicatos, federações e confederações).
É verdade que, ao extinguir a contribuição sindical obrigatória aos não associados (arts. 578 e 582, ambos da Consolidação, e Súmula 666 do STF; Súmula Vinculante 40 do STF e Precedente Normativo 119 do TST) e estabelecer a prevalência do negociado sobre o legislado (arts. 611-A e 611-B, da CLT (LGL\1943\5)), a Reforma Trabalhista de 2017 deu importante passo para o fim do modelo corporativista de organização sindical e incremento de normas autônomas setorialmente mais adequadas do que as estatais.
A crítica à extinção da contribuição sindical obrigatória tem razão apenas no que diz respeito à maneira de como ela foi realizada, ou seja, de maneira abrupta, sem que os sindicatos tivessem tempo de se programar e buscar formas alternativas de custeio do sistema confederativo.
Fato é que tolher os trabalhadores da liberdade de criar mais de um sindicato numa certa base territorial e, ainda, cerceá-los da liberdade de escolher qual sindicato querem empoderar para representá-los coletivamente nas negociações, são entraves à liberdade sindical, direito fundamental inerente à cidadania e democracia nas relações de trabalho.8
Na doutrina, Túlio Massoni bem resumiu a questão ao afirmar que
“a liberdade sindical, concebida como direito fundamental de associação no plano das relações de trabalho, tem inegável centralidade para que uma sociedade possa se intitular autenticamente democrática. Associações sindicais livres e representativas (e representativas porque livres) que defendam a cidadania dos trabalhadores e garantam o espaço de circulação autônoma da palavra e da ação são fundamentais para a democracia política”9.
Nos momentos que antecederam a pandemia da Covid-19, muitos sindicatos, infelizmente, se preocupavam em criar expedientes para fraudar a lei e, por via transversa (por exemplo, mediante simples aprovação em assembleia ou cláusulas de acordos e convenções coletivas de trabalho), voltar a cobrar a contribuição sindical que a Lei tornara facultativa.
A baixa arrecadação dos sindicatos acelerou o processo de enfraquecimento e distanciamento dos trabalhadores, ocasionando uma crise de confiança dos trabalhadores, da sociedade, e do próprio Poder Judiciário, sobre a representatividade dos sindicatos brasileiros.
E a falta de representatividade dos nossos sindicatos restou escancarada com a crise econômica da pandemia da Covid-19.
A Lei 14.020, de 6 de julho de 2020, que dentre outras coisas, facultou às partes, observados certos limites prescritos na lei, mediante acordo individual, e enquanto perdurar o estado de calamidade pública da Covid-19, a possibilidade de redução proporcional da jornada de trabalho e do salário dos trabalhadores, por até 120 dias10, com a complementação da renda do trabalhador, pela União, através do chamado Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, está em total contrariedade ao disposto nos incisos VI e XXVI, do art. 7º e incisos III e VI, do art. 8º, da Constituição Federal.
Ao apreciar o pedido de concessão de tutela de urgência na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.663 (“ADI”), ajuizada pela Rede Sustentabilidade, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, reconheceram a constitucionalidade da até então vigente MP 936 (convertida na Lei 14.020, de 6 de julho de 2020) e a validade dos acordos individuais sem a participação sindical na redução proporcional de jornada de trabalho e salário, observados os percentuais e limites trazidos na medida provisória. E, quem assistiu ao julgamento telepresencial do pedido de liminar, percebeu o descrédito dos Ministros sobre a capacidade de os sindicatos, num contexto de crise, fragilizados pela redução da arrecadação de contribuições sindicais, darem vasão a todas as demandas de negociações coletivas necessárias num curto espaço de tempo, e a possibilidade dessa ineficiência causar danos ainda maiores aos trabalhadores que correriam o risco de perder os seus empregos sem os acordos individuais.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, ao arrepio da Constituição, claramente teve cunho político em razão da fragilidade dos sindicatos brasileiros. Paradoxalmente, essa decisão desfavorável, quiçá, tenha sido a maior vitória do movimento sindical brasileiro, afinal, é na derrota que aprendemos as melhores lições: que caminhemos, finalmente, para a cidadania e a democracia da liberdade sindical, ratificando a Convenção 87, da Organização Internacional do Trabalho (“OIT”).
Com autonomia privada coletiva ressignificada pelo princípio da liberdade sindical insculpido na Convenção 87 da OIT, ter-se-ão normas autônomas adequadas à realidade de cada segmento econômico, com adesão social dos trabalhadores, recolocando o Direito do Trabalho nos seus devidos trilhos no período pós Covid-19.
3. Um Poder Judiciário que respeite o Estado Democrático de Direito
Como já mencionamos linhas acima, o Estado Democrático de Direito representa fundamento da República Federativa do Brasil (caput, do art. 1º da Constituição) e cláusula pétrea da Constituição Federal (inciso III, do § 4º, do art. 60).
Um verdadeiro Estado de Direito respeita e promove os direitos humanos oriundos de tratados internacionais ratificados pelo Brasil (inciso II, do art. 4º, § 3º do art. 5º, ambos da CF (LGL\1988\3)) e os direitos fundamentais individuais e sociais previstos de maneira esparsa na Constituição Federal (inciso III, do § 4º, do art. 60 da CF (LGL\1988\3)).
Um “Estado Democrático” que respeita a soberania (inciso I do art. 1º) e reconhece que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos democraticamente (parágrafo único, do art. 1º da CF (LGL\1988\3)), com Poderes independentes e harmônicos entre si (Legislativo, Executivo e Judiciário), cada qual com a respetiva repartição de atribuições.
Com o fenômeno da constitucionalização do direito privado no período pós-guerra, a judicialização de temas políticos se tornou uma realidade em diversos países do mundo, notadamente na Alemanha e nos Estados Unidos. E, no Brasil, em razão da falta de adesão social aos mecanismos autônomos de solução de conflitos e da excessiva litigiosidade para a promoção de direitos fundamentais, criou-se um palco propício para que as questões políticas da nação fossem levadas ao Poder Judiciário.11
O Direito do Trabalho sempre esteve intimamente ligado aos direitos fundamentais individuais e sociais e, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, com o reconhecimento da eficácia imediata dos direitos fundamentais sobre as relações privadas (§ 1º do art. 5º da Constituição) e a superação do positivismo jurídico clássico, disseminou-se, nos processos trabalhistas, a prática de utilização de princípios constitucionais como subterfúgios para afastar a aplicação da legislação ordinária infraconstitucional ou de acordos e convenções coletivas de trabalho, firmados no âmbito do Direito Coletivo do Trabalho.
Princípios como a dignidade da pessoa humana (inciso III, do art. 1º, da Constituição), o valor social do trabalho (inciso IV, do art. 1º e caput do art. 170 da Constituição), a função social da propriedade (inciso XIV, do art. 5º e inciso III, do art. 170, da Constituição Federal) e a melhoria da condição social do trabalhador (caput do art. 7º da Constituição), por exemplo, passaram a ser utilizados em algumas decisões trabalhistas como argumentos para a imposição da visão pessoal dos juízes sobre determinadas normas heterônomas do Direito do Trabalho. No mesmo sentido, o art. 9º da CLT (LGL\1943\5) também é invocado para subsidiar a decisão pessoal dos magistrados sobre determinados assuntos.
E, para agravar, tais princípios de direitos fundamentais individuais e sociais muitas vezes são utilizados sem o necessário rigor técnico que a decisão judicial exige (inciso IX do art. 93 da Constituição Federal, art. 832 da CLT (LGL\1943\5), e inciso II do art. 489, do Código de Processo Civil – “CPC (LGL\2015\1656)”), sem contextualização com os fatos ou fundamentos jurídicos trazidos pelas partes no caso concreto, como se eles falassem por si só, e fossem autoaplicáveis. “Coringas” para motivarem decisões judiciais, inclusive em sentidos diametralmente opostos.
Esse “salto hermenêutico” de invocar direitos fundamentais para deixar de aplicar as normas heterônomas, a despeito do argumento sedutor do pós-positivismo jurídico e da eficácia imediata dos direitos fundamentais, em realidade, é atentatório ao Estado Democrático de Direito.
Juízes não foram eleitos democraticamente e, portanto, não estão legitimados pelo povo a criar normas trabalhistas, ainda que o façam para a solução do caso concreto.12 Trata-se de uma afronta à democracia do sistema federativo brasileiro que pressupõe Poderes harmônicos, mas independentes entre si.
Essa postura de ativismo judicial sem a utilização de critérios adequados e racionalmente apreensíveis viola o chamado princípio da proteção da confiança, que se traduz no primado da segurança jurídica. As normas são criadas para se conferir previsibilidade aos comportamentos humanos no convívio em sociedade. Logo, quando uma norma constitucional genérica é utilizada como argumento para afastar uma norma infraconstitucional específica (pressupondo-se, aqui, naturalmente, a sua constitucionalidade), a escolha democrática do legislador subordina-se à vontade pessoal do julgador, gerando instabilidade social.
É importante lembrar que compete ao Poder Legislativo a liberdade de conformação das normas estatais, que se consubstancia na prerrogativa de “definir, em primeira linha, o interesse público, fazê-lo com liberdade de agir ou não agir e fazê-lo à luz do entendimento que nele prevaleça”, afinal “a maioria de certo momento não tem de manter em vigor a legislação correspondente às opções da maioria que a precedeu e é o povo, por via das eleições, que decide”13.
Como bem salientam José Luis de Morais e Guilherme Valle Brum, “o espaço privilegiado de depósito de sonhos (anseios, desejos...) de uma outra sociedade, respeitados os limites constitucionais, deve ser construído, primordialmente, no campo da política e não da jurisdição”. E os autores concluem que o ativismo judicial gera um problema de legitimidade do Poder Judiciário, pois “desconsiderar deveres em nome de desejos, mesmo que disfarçados de direitos constitucionais, pode ser indicativo do nascedouro de uma crise que, consolidada, terá o condão de colocar a perder a dimensão reflexiva da jurisdição constitucional, corroendo-lhe, com isso, a indispensável legitimidade”14.
No Brasil, a judicialização dos direitos fundamentais e sociais perante a Justiça do Trabalho inspirou a Reforma Trabalhista de 2017 para alterar dispositivos da Consolidação a fim de restringir os poderes dos magistrados.
O § 2º do art. 8º da CLT (LGL\1943\5) estabelece que “súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei”.
No mesmo sentido, o § 3º do art. 8º da CLT (LGL\1943\5) prevê que “no exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil (LGL\2002\400)), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”.
Pois bem, o estado de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 acarretou a necessidade de os Poderes Executivo e Legislativo intervirem na economia e na sociedade, adotando uma série de medidas com o fito de preservar a saúde financeira das empresas e o emprego dos trabalhadores.
Exemplificativamente, citamos as Medidas Provisórias 927 – que vigeu até 19 de julho de 2020 – e 936, esta, posteriormente, convertida na Lei 14.020, de 6 de julho de 2020. A primeira, enquanto vigorou, flexibilizou direitos trabalhistas como, por exemplo, os requisitos para o teletrabalho, a antecipação de férias e a dilação dos prazos para a compensação de jornada de trabalho. A segunda, convertida em lei, previu a possibilidade de redução proporcional de jornada de trabalho e salário ou a suspensão do contrato de trabalho. Referidos diplomas legislativos contêm pontos controvertidos e polêmicos, mas foram editados, repita-se, com o intuito de reduzir os impactos sociais e econômicos da pandemia.
Diversas notícias dão conta de que o número de ações trabalhistas cresceu exponencialmente em razão da pandemia da Covid-19.15 E o Poder Judiciário trabalhista já está sendo chamado à dirimir os primeiros conflitos decorrentes da pandemia da Covid-19, especialmente aqueles formulados em sede de tutelas de urgência.
O que se tem visto com frequência são: (a) pedidos de reintegração ao emprego em razão de dispensas coletivas sem prévia negociação com os sindicatos, (b) requerimentos das empresas de revisão dos critérios de pagamento de acordos celebrados antes da pandemia e (c) discussões relacionadas à caracterização de força maior e fato do príncipe para fins de pagamento de delimitação das verbas rescisórias e os responsáveis pelo seu pagamento.
Sobre a dispensa coletiva sem prévia negociação sindical, por exemplo, a despeito do que prevê expressamente o art. 477-A da CLT (LGL\1943\5), já existem decisões dissonantes no âmbito dos tribunais. Enquanto o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região suspendeu a reintegração de trabalhadores demitidos em razão de dificuldades financeiras suportadas por empresas frente à pandemia da Covid-19 (Mandado de Segurança 0000247-25.2020.5.12.0000), por entender o art. 477-A não foi declarado inconstitucional e não teve a sua redação suspensa pelas Medidas Provisórias 927 (que caducou em 19 de julho de 2020) e 936 (posteriormente convertida na Lei 14.020, de 6 de julho de 2020)o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Mandado de Segurança n. 0006324-66.2020.5.15.0000), invocando princípios constitucionais como a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a boa-fé objetiva, simplesmente ignorou o art. 477-A da CLT (LGL\1943\5), em claro ativismo judicial.
Então, o que esperar do Poder Judiciário trabalhista após a Covid-19?
Primeiro, que seja respeitado o Estado Democrático de Direito, com a aplicação das normas heterônomas estatais ou negociadas nesse momento sui generis da história mundial, observando-se os limites prescritos nos §§ 2º e 3º do art. 8º da CLT (LGL\1943\5), para legitimar a atuação do Poder Judiciário, de sorte que haja a pacificação social.
Segundo, que os nossos juízes trabalhistas ajam com prudência e parcimônia,16 fundamentando suas decisões17 de maneira racional e apreensível, sempre atentos às consequências que as suas decisões podem provocar, especialmente no contexto atual de crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19, tal como determinam os arts. 24,18 2519 e 26,20 do Código de Ética da Magistratura Nacional.
4. Uma visão romântica da relação de emprego para a convergência e complementaridade entre capital e trabalho
A crise causada pela Covid-19, diferentemente de outras crises que vivemos no passado, possui características próprias: generalidade e incerteza. A gravidade é inerente a toda crise, mas, essa, decorrente da pandemia, foi tamanha que até exigiu o reconhecimento do estado de calamidade pública e demandou a intervenção do Estado na saúde, na economia e na sociedade em geral.
Generalidade, porque não se trata de uma crise de um determinado setor da economia, como, por exemplo, recentemente vivenciou o mercado imobiliário brasileiro. Com exceção das empresas que atuam em atividades essenciais, as demais foram em maior ou menor escala, afetadas, direta o indiretamente.
Uma crise cercada de incertezas; sabemos quando começou, mas não sabemos quando e como irá terminar. E, mesmo que a pandemia passe, as prioridades e os gostos dos brasileiros tendem a se modificar, o que gera mais incertezas ao empresariado.
Trata-se, portanto, de uma “crise das crises” que colocou os empregados e os empregadores em estado de vulnerabilidade. O empregado, com a tradicional vulnerabilidade econômica perante o empregador (hipossuficiente). E o empregador com uma particular vulnerabilidade econômica – que se diferencia da tradicional assunção dos riscos do negócio, prevista no art. 2º, da Consolidação – na crise das crises decorrente da pandemia da Covid-19.
As formas de trabalho do mundo globalizado (part time, on call, trabalhos em plataformas digitais, etc.), as quais provavelmente também sofrerão novas metamorfoses após a pandemia da Covid-19, tendem a deslocar a relação de trabalho da teoria contratualista para a institucionalista.
Eleva-se a ideia de inserção do trabalhador na estrutura jurídica da empresa e de convergência de interesses na superação da crise, afinal, manutenção dos postos de trabalho dos empregados só é possível se houver a preservação da fonte produtora, na mesma esteira do que prevê o art. 47, da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (“LRF”).
E, nesse contexto, se ambos estão imbuídos do mesmo propósito que é a superação da crise da Covid-19, empregados e empregadores devem agir de boa-fé um com o outro, respeitando-se os deveres anexos de lealdade, informação e cooperação.
O empregador deve avaliar de forma objetiva o impacto da pandemia da Covid-19 na sua atividade empresarial. As adversidades mais comuns têm sido a escassez de matérias-primas para a continuidade da produção, a queda na venda de produtos ou serviços e aumento da taxa de inadimplência.
Mapeado o impacto da crise da pandemia da Covid-19, a partir das perspectivas de mercado do seu segmento, o empregador deve buscar alternativas para a continuidade do seu negócio, mas sempre priorizando, na medida do economicamente viável, a preservação de empregos e renda dos trabalhadores, face à função social da propriedade.
Parece-nos, inclusive, que somente as empresas que realmente tiveram os seus negócios afetados pela pandemia da Covid-19 teriam legitimidade para adotar as medidas de flexibilização contidas na Lei 14.020, de 6 de julho de 2020 (vigente). As que o fizerem de maneira oportunista estarão abusando do direito, na forma do art. 187 do CCB, aplicável supletivamente ao Direito do Trabalho, por força do § 1º do art. 8º da CLT (LGL\1943\5).
E se os trabalhadores estão imbuídos do mesmo propósito de seus empregadores na superação da crise da pandemia, por que não os convidar a participar de maneira definitiva na gestão da empresa pós Covid-19, tal como estabelecem de maneira programática os arts. 11, da CF (LGL\1988\3) e 510-A, da CLT (LGL\1943\5)? É uma excelente oportunidade para efetivarmos o exercício da cidadania dos trabalhadores na empresa, democratizando-se da relação de trabalho com ideia de pertencimento do empregado à empresa.
Mas, independentemente de os empregados participarem da gestão da empresa, é imprescindível que eles ao menos sejam informados acerca da situação de crise econômico-financeira da empresa e das medidas que o empregador pretende adotar para superá-la. O conhecimento gera conscientização e potencializa o engajamento do trabalhador no projeto de preservação da empresa.
O conhecimento da situação de dificuldade econômico-financeira da empresa deve constar dos “considerandos” dos contratos individuais firmados entre empregados e empregadores para redução proporcional de jornada de trabalho e salário, referidos na Lei 14.020, de 6 de julho de 2020, para que, no futuro, não haja alegação de nulidade do pactuado por coação ou estado de necessidade. O empregado ciente e consciente da adversidade econômico-financeira da empresa não poderá futuramente invocar a própria torpeza para buscar a nulidade do aditivo contratual, pois estará o fazendo em má-fé.
Igualmente, cabe reforçar a necessidade de cooperação e solidariedade entre as partes.
Diante da possível redução de mão-de-obra e escassez de recursos, empregados tenderão a acumular funções – presumidamente compatíveis com a condição pessoal de cada trabalhador – e terão de ser ainda mais eficientes, qualitativa e quantitativamente.
Terão, ainda, os empregados de colaborar, com mais ênfase e cuidado, no cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, tal como consta do inciso I do art. 158 da CLT (LGL\1943\5). Ainda mais quando o empregado estiver trabalhando remotamente, em sua própria residência, com mobiliário próprio, com necessidade de respeito às normas de ergonomia.
Em contrapartida, empregadores terão o compromisso de buscar a manutenção dos postos de trabalho e renda dos empregados, estimulando o engajamento sem incorrer em excessos. Terão, também, a missão de promover de maneira responsável o retorno dos empregados ao trabalho, pós Covid-19, seguindo os protocolos prescritos pela Organização Mundial de Saúde ou autoridades competentes.
Em resumo, quiçá com uma visão romântica, mas esperançosa, pensamos que a tradicional comutatividade da relação de emprego será revisada a fim de incrementar direitos e obrigações de lado a lado. E, se estiverem reciprocamente comprometidos, empregados e empregadores, finalmente atingirão um nível mais elevado de maturidade na relação de trabalho, reduzindo-se o conflito entre capital e trabalho através do realinhamento desses vetores que, na realidade, não são opostos, mas, sim, complementares.
5. Considerações finais
A pandemia da Covid-19 modificou radicalmente as relações interpessoais. Ainda há muitos aspectos que merecem reflexão cuidadosa. Fato é que a pandemia da Covid-19 já nos deixou importantes legados que não podem cair no esquecimento ao término do estado de calamidade pública:
a. necessidade de regulamentação heterônoma estatal do trabalho autônomo economicamente dependente, de sorte que a proteção inerente ao Direito do Trabalho alcance as novas formas de trabalho;
b. fim do modelo corporativista, com a ratificação pelo Brasil da Convenção 87, da OIT, pois a liberdade sindical fortalecerá o movimento sindical brasileiro, propiciando a disseminação de normas autônomas adequadas à realidade de cada segmento econômico, com adesão social dos trabalhadores;
c. parcimônia da Justiça do Trabalho nos julgamentos de processos, com ampla fundamentação das decisões e observância dos limites impostos pelos §§ 2º e 3º, do art. 8º, da CLT (LGL\1943\5), para que possamos alcançar a paz social;
d. retomemos o romantismo da relação de emprego, lembrando-nos da complementaridade entre capital e trabalho, resgatando o compromisso ético de empregados e empregadores numa visão da relação empregatícia, promovendo a cidadania e a democracia no interior da empresa.
Referências bibliográficas
BARBOSA, Gustavo Filipe Garcia. Reforma Trabalhista. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.
BARCELLOS, Ana Paula de. Direitos fundamentais e direito à justificativa: devido procedimento na elaboração da normativa. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020.
SILVA, Alexandre Fernandes et al. Hermenêutica, Justiça Constitucional e Direitos Fundamentais. MIRANDA, Jorge et al (Coords.) Curitiba: Juruá, 2016.
JUCÁ, Francisco Pedro. Direito do Trabalho nos novos tempos. Revista de Direito do Trabalho, v. 196/2018, dez/2018, Editora Thomson Reuters.
MASSONI, Tulio. Do corporativismo para a liberdade sindical: a experiência da Itália. Revista de Direito do Trabalho, v. 156/2014, Mar-Abr, 2014.
MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2018.
ROMAR, Carla Teresa Martins. Direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2009.
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
SANTOS, Boaventura Sousa de. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
VALVERDE, Antonio Martin. Derecho del Trabajo. 22. ed. Madri: Editorial Tecnos, 2013.
1 .ROMAR, Carla Teresa Martins. Direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 74. 2 .VALVERDE, Antonio Martin. Derecho del Trabajo. 22. ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2013. p. 54. 3 .ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2009. p. 416. 4 .Nesse sentido é o Estatuto del Trabajo Autónomo, Lei 20/2007 e posteriores modificações. Disponível em: [www.iberley.es/legislacion/ley-31-2015-9-sep-modifica-actualiza-normativa-materia-autoempleo-medidas-fomento-promocion-trabajo-autonomo-economia-social-23127511]. Acesso em: 26.05.2020. 5 .JUCÁ, Francisco Pedro. Direito do Trabalho nos novos tempos. Revista de Direito do Trabalho, v. 196/2018, dez/2018, p. 177-204, Editora Thomson Reuters. 6 .SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 135-136. 7 .A respeito do princípio da reserva do possível, remetemos o leitor às lições do constitucionalista português Jorge Miranda (MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2018. p. 534-534). 8 .Vale ponderar que a liberdade sindical foi erigida à condição de direito fundamental dos trabalhadores brasileiros (§§ 1º e 2º, do art. 5º, da Constituição), conforme dispõem os artigos 22, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (incorporado no ordenamento jurídico através do Decreto 592, de 06 de julho de 1992 (LGL\1992\36)), e 8º, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (incorporado no ordenamento jurídico através do Decreto 591, de 06 de julho de 1992 (LGL\1992\37)). 9 .MASSONI, Tulio. Do corporativismo para a liberdade sindical: a experiência da Itália. Revista de Direito do Trabalho, v. 156/2014, Mar-Abr, 2014. 10 .O prazo de até 120 dias, no total, para a redução proporcional de jornada de trabalho e salário dos empregados foi estabelecido no art. 4º, do Decreto 10.422, de 13 de julho de 2020 (LGL\2020\9125), que ampliou o prazo prescrito no art. 16, da Lei 14.020, de 6 de julho de 2020. Transcrevemos o art. 4º, do Decreto 10.422, de 13 de julho de 2020 (LGL\2020\9125): “O prazo máximo para celebrar acordo de redução proporcional de jornada e de salário e de suspensão temporária do contrato de trabalho, ainda que em períodos sucessivos ou intercalados, de que trata o art. 16 da Lei nº 14.020, de 2020, fica acrescido de trinta dias, de modo a completar o total de cento e vinte dias, respeitado o prazo máximo resultante da prorrogação de que trata o art. 3º”. 11 .Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, Boaventura Sousa de. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 29) afirma que “há a judicialização da política sempre os tribunais, no desempenho normal de suas funções, afetam de modo significativo as condições da ação política”. 12 .Em sentido contrário, registramos a opinião de Gustavo Filipe Barbosa Garcia (BARBOSA, Gustavo Filipe Garcia. Reforma Trabalhista. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. p. 35), ao afirmar que “a decisão judicial é considerada norma jurídica individual, que rege o caso concreto, sendo obrigatória para as partes. Assim, deve-se reconhecer a função da jurisprudência de ajustar a ordem jurídica em consonância com a evolução social”. 13 .MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2018. p. 341. 14 .Trata-se de artigo escrito por José Luis Bolzan de Morais e Guilherme Valle Brum intitulado “De uma ‘hermenêutica dos desejos’ a uma ‘Constituição ilimitada’: notas inaugurais.”, na obra coletiva SILVA, Alexandre Fernandes et al. Hermenêutica, Justiça Constitucional e Direitos Fundamentais. MIRANDA, Jorge et al (Coords.) Curitiba: Juruá, 2016. 15 .Disponível em: [https://extra.globo.com/noticias/economia/numero-de-acoes-trabalhistas-relacionadas-covid-19-cresceu-mais-de-600-desde-abril-24438961.html]. Acesso em: 26.05.2020; Disponível em: [www.conjur.com.br/2020-mai-02/numero-acoes-trabalhistas-durante-epidemia-cada-vez-maior]. Acesso em: 26.05.2020; Disponível em: [www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/acoes-trabalhistas-caem-35-na-contramao-as-ligadas-a-virus-disparam.shtml#comentarios]. Acesso em: 26.05.2020. 16 .O Ministro Luiz Fux, em artigo escrito ao jornal “O Globo”, em 30 de março de 2020 ressaltou a importância do papel a ser exercido pelos magistrados no julgamento dos processos relacionados direta ou indiretamente com a crise econômica, social e política decorrente da Covid-19: “É tudo novo para a Ciência, quiçá para o Judiciário. Nesse contexto, impõe-se aos juízes atenção para as consequências das suas decisões, recomendando-se prudência redobrada em cenários nos quais os impactos da intervenção judicial são complexos, incalculáveis ou imprevisíveis. (...) Positivamente, não é hora do impulso imoderado, mas do raciocínio prudente, racional e consequencialista, sob pena de a Justiça, cujo o desígnio é dar a cada um o que é seu, transformar-se num paciente infectado por uma Covid que adoece a alma e a razão, ferindo de morte, a um só tempo, a vida dos que sofrem e a esperança dos que intentam viver”. Disponível em: [https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-justica-infectada-hora-da-prudencia-24337119]. Acesso em: 26.05.2020. 17 .Ana Paula de Barcellos (BARCELLOS, Ana Paula de. Direitos fundamentais e direito à justificativa: devido procedimento na elaboração da normativa. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020), explicando o problema de como devem ser tomadas as decisões que afetam a democracia, ressalta que “se tem enfatizado o dever de fundamentação das decisões judiciais, a participação, o debate e a deliberação, sobretudo daquelas decisões que interferem com o espaço tradicionalmente ocupado pelos demais Poderes ou que cuidam de matérias acerca das quais há desacordos morais ou polarizações sociais”. 18 .“Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz do Direito aplicável”. 19 .“Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar”. 20 .“Art. 26. O magistrado deve manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa, podendo confirmar ou retificar posições anteriormente assumidas nos processos em que atua”.
Fabíola Marques Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho da PUC-SP, nos cursos de Graduação e Pós-Graduação. Ex-Presidente da Associação dos Advogados Trabalhista de São Paulo – AATSP. Ex-Presidente da Comissão Especial de Direito Material do Trabalho da OAB/SP. Ex-Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP nos mandatos de 2010/2012, 2013/2015 e 2016/2018. Membro efetivo da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia e da Comissão da Mulher advogada, no triênio 2016/2018. Membro do grupo de pesquisa Direito, Gênero e Igualdade da Faculdade de Direito da PUC/SP. Advogada. fabiola@abudmarques.com.br Aldo Augusto Martinez Neto Doutorando em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2019). Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP (2012). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do São Bernardo do Campo (2004). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela PUC-SP (2008). Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo IASP (2016) e participa da Comissão de Direito do Trabalho e Membro da Comissão Especial de Relacionamento da OAB/SP com o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Advogado. aldo.martinez@santosneto.com.br
Comments