CRÉDITO, INADIMPLÊNCIA E A IMPORTÂNCIA DO PLS 283/2012 PARA PREVENÇÃO E TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDAM
- Raul Maia
- 29 de jun. de 2020
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CRÉDITO, INADIMPLÊNCIA E A IMPORTÂNCIA DO PLS 283/2012 PARA PREVENÇÃO E TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO
Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira
Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora na Escola Superior de Advocacia da OAB/PR e em pós-graduações nas universidades Positivo, Unicuritiba, Damásio Educacional, ABDConst - Academia Brasileira de Direito Constitucional e FIEP - Faculdades da Indústria do Estado do Paraná. Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/PR (2013 - 2105). Diretora Adjunta da Comissão Permanente de Acesso à Justiça do Brasilcon (2014 - 2016). Advogada.
Área do Direito:
Consumidor
Na última década emergiu no Brasil o fenômeno da explosão do consumo de crédito, especialmente pelas pessoas físicas, ante o ingresso de mais de 30 (trinta) milhões de novos consumidores ao mercado financeiro. O acesso ao crédito pode aumentar a capacidade de consumo e aquecer o mercado, propiciando mais trocas econômicas, mas os riscos da concessão voraz do crédito, entre os quais a inadimplência e o superendividamento do consumidor, reclamam atenção. Em nível mundial, reconhece-se que o superendividamento em alta escala apresenta o risco sistêmico de gerar crise econômica, tal como aponta o relatório elaborado pelo Banco Mundial, após a crise de 2008.1
Como a economia brasileira adota o modelo de endividamento, "tudo se articula com o crédito. O crescimento econômico é condicionado por ele. O endividamento dos lares funciona como meio de financiar a atividade econômica. Segundo a cultura do endividamento, viver a crédito é um bom hábito de vida. Maneira de ascensão ao nível de vida e conforto do mundo contemporâneo, o crédito não é um favor, mas um direito fácil."2
Porém, consumo e crédito são "duas faces damesma moeda", uma moeda da sorte, mas também do azar. O crédito é necessário para o consumo e, com a oferta de crédito, a produção aumenta, surgem novas vagas de emprego, o mercado de consumo se expande, aquecendo a economia. Mas se o consumidor ingressa na inadimplência, seu nome é incluído nos cadastros de proteção ao crédito, o que lhe impossibilita o consumo a prazo, praxe do mercado brasileiro. Quando a inadimplência atinge níveis muito elevados, forma-se um cenário de crise, em uma reação em cadeia, as taxas de juros sobem, os preços e a insolvência aumentam, quebra-se a confiança e a redução do consumo desacelera a economia. Portanto, se de um lado o crédito permite a inclusão de pessoas de baixa renda na sociedade de consumo, ampliando o acesso a bens e serviços, de outro contempla um risco inerente de conduzir o consumidor ao superendividamento, que o exclui do mercado de consumo.3
No cenário atual de crise, com aumento do desemprego e das taxas de juros, diminuição de renda e inflação alta, os índices de inadimplência atingiram patamares recordes, afetando mais de 56,4 milhões de brasileiros.4 Em momento muito oportuno, foi recentemente aprovado o Projeto de Lei do Senado n. 283/2012, já enviado à Câmara dos Deputados, para análise das propostas que visam a atualizar o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, com a inclusão de medidas para prevenção e tratamento do superendividamento.
O superendividamento se caracteriza pela "impossibilidade global do devedor - pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos), em um tempo razoável com sua capacidade atual e futura de rendas e patrimônio." Trata-se de um estado da pessoa física leiga, que o contraiu de boa-fé, mas que ante alguma situação de impossibilidade (subjetiva) e global (universal e não passageira), não tem condições de pagar todas as suas dívidas de consumo, atuais (já exigíveis) e futuras (que irão vencer), com a sua renda e patrimônio (ativo), por um tempo razoável, ou seja, sem ter que fazer um esforço por longos anos, "quase uma escravidão ou hipoteca do futuro".5
O superendividamento se classifica em ativo e passivo. Ativo se o consumidor contribui para o endividamento, em virtude de má gestão do orçamento, gastando mais do que ganha, podendo ser inconsciente, quando o consumidor age impulsivamente, sem a necessária previdência no controle dos gastos; ou consciente, que se trata do endividamento de má-fé, sem intenção de pagamento pelo devedor. O superendividamento passivo, por sua vez, é o causado pelos chamados acidentes da vida (divórcio, doença, morte, desemprego etc.), fatores que afetam de forma desfavorável a conjuntura econômica do consumidor, conduzindo ao uso do crédito ante a escassez de recursos para satisfazer suas necessidades mínimas de consumo.6
O PLS 283/2012 foi inspirado no modelo francês de prevenção e tratamento de superendividamento, que foca na reeducação financeira do consumidor; em pesquisas empíricas que constataram que a maioria dos brasileiros superendividados ingressou neste estado por acidentes da vida (superendividamento passivo); bem como na experiência bem sucedida de projetos aplicados no Poder Judiciário, de conciliação para tratamento do superendividamento.
Em linhas gerais, o projeto preza pelo respeito da boa-fé nas relações de consumo, reforçando os deveres dos fornecedores de crédito, na transparência das informações e na cooperação para com o consumidor. As novas normas apostam na entrega da cópia do contrato ao consumidor, na prevenção do superendividamento e na preservação do mínimo existencial. Para tanto, combatem as práticas de promoção do endividamento, exigem a informação detalhada sobre os elementos principais do crédito, esclarecendo o consumidor, leigo, sobre os riscos da operação e o comprometimento futuro da renda. O fornecedor deverá não só informar, mas também "esclarecer, aconselhar e advertir adequadamente o consumidor sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, assim como sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento" (art. 54-C, I).
Ainda na fase pré-contratual, para reduzir o déficit informacional, exige-se que a proposta de crédito seja fornecida por escrito, facilitando a compreensão sobre os encargos bancários. Além disso, impõe-se ao fornecedor que avalie de forma adequada as condições de pagamento pelo consumidor, para concessão responsável do crédito. E, para evitar o assédio na oferta do crédito, o projeto reforça a proteção aos sujeitos hipervulneráveis (art. 54-F, IV) e veda a adoção de práticas comuns hoje no Brasil, tais com formular preço para pagamento a prazo idêntico ao pagamento à vista; fazer referência a crédito "sem juros", "gratuito", "sem acréscimo", com "taxa zero" ou expressão de sentido ou entendimento semelhante; e indicar que uma operação de crédito poderá ser concluída, sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor (art. 54-B).
Para fazer valer os novos deveres, o projeto estipula que o desrespeito a tais exigências "acarreta a inexigibilidade ou a redução dos juros, encargos, ou qualquer acréscimo ao principal, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e da indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor" (art. 54-C, §2º).
Por fim, dentre as novas garantias, inclui-se o direito básico do consumidor à repactuação das dívidas, com a preservação do mínimo existencial (art. 6º, XII). E cria-se um procedimento de tratamento das situações de superendividamento, que pode ser conduzido de forma consensual, formulando-se um plano global de pagamento com credores, preservando o mínimo existencial ao consumidor, que assume compromisso de não se endividar novamente. Caso não seja alcançada a conciliação, prossegue-se com o plano compulsório de reestruturação judicial, em que o juiz, após determinar "a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos", analisará a totalidade da renda e patrimônio disponível do consumidor e o passivo pendente, para, desta forma, reescalonar as dívidas, podendo reduzir (ou excluir) os encargos, dilatar os prazos de pagamento (sem aumento da dívida), constituir ou substituir garantias.
A aprovação do PLS 283/2012 urge como medida necessária, para assegurar aos consumidores, superendividados e de boa-fé, os caminhos para adimplirem suas dívidas e serem reinseridos no mercado de consumo, dando início a novas trocas econômicas, indispensáveis para alavancar a economia, tão afetada no cenário atual de crise.
1 Conclusões do Relatório do Banco Mundial sobre o tratamento do superendividamento e insolvência da pessoa física - Resumo e conclusões finais. Tradução por Ardyllis Alves Soares. Revista de Direito do Consumidor n. 89, set-out/2013, 435-451. 2 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. O direito do consumidor endividado e a técnica do prazo de reflexão. Revista de Direito do Consumidor n. 43. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 259-272. 3 MARQUES, Cláudia Lima. Algumas perguntas e respostas sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor n. 75, jul-set/2010, p. 16-19. 4 Inadimplentes já somam 56,4 milhões. Folha de São Paulo, 10/08/2015. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/08/1666588-inadimplentes-ja-somam-564-milhoes-no-pais.shtml, acesso em 14/10/2015. 5 MARQUES, Cláudia Lima. Algumas perguntas e respostas sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor n. 75, jul-set/2010, p. 20-21. 6 Conforme Maria Manuel Leitão Marques e Gilles Paisant, citados por SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. Revista de Direito do Consumidor n. 71. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 9-33.




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