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ATUAÇÃO DO STF NA PANDEMIA DO COVID-19

ATUAÇÃO DO STF NA PANDEMIA DO COVID-19. FINE LINE ENTRE APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ATIVISMO JUDICIAL


Georges Abboud Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor de processo civil da PUC-SP e do programa de mestrado e doutorado em direito constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP-DF. Advogado e Consultor Jurídico. georges.abboud@neryadvogados.com.br Maira Scavuzzi Mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP. Doutoranda em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Membra da ABDPRO – Associação Brasileira de Direito Processual. Advogada. maiscavusk@gmail.com Ricardo Yamin Fernandes Mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP. Doutorando em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Membro da ABDPRO – Associação Brasileira de Direito Processual. Advogado e Consultor Jurídico. yamin587@hotmail.com Área do Direito: Constitucional; Processual Resumo: Propõe-se, no presente estudo, a análise das decisões do Supremo Tribunal Federal, proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, em processos que discutem as medidas de combate à pandemia da COVID-19. O objetivo é apurar se, ao decidir, o Supremo Tribunal Federal se ateve aos limites impostos pelo Direito, ou se os excedeu, entrando na esfera de competência dos outros poderes da república. Palavras-chave: Ativismo judicial – Teoria da decisão – Pandemia da COVID-19 – Crise institucional Abstract: We aim, in the present study, to analyze decisions of the Supreme Federal Court, handed down constitutionality control, in cases discussing the measures to combat the pandemic of COVID-19. The objective is to determine whether the Supreme Federal Court adhered to the limits imposed by law, or if it exceeded them. Keywords: Judicial activism – Decision theory – Pandemic of COVID-19 – Institutional crisis Sumário: 1.Introdução


1.Introdução

No início de 2020 o mundo assistiu, atônito, ao avanço crescente da pandemia, que proporcionou crise sem precedentes na sociedade brasileira. Tal crise, ocasionada pelo novo coronavírus, é, provavelmente, a maior que enfrentaremos em nossa geração, e tem se posto como o desafio do século às autoridades dos mais variados Estados do mundo.

A partir da edição do Decreto-lei 6, de 20 de março de 2020, que decretou estado de calamidade pública no Brasil, uma série de medidas passaram a ser tomadas pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para tentar conter os avanços do vírus e mitigar seus danos.

Nesse cenário, o Poder Executivo Federal agiu por meio de Medidas Provisórias e outros atos que, por mais de uma vez, foram acusados de conter determinações consideradas ofensivas à Lei, à Constituição ou às diretrizes recomendadas por órgão internacionais – a exemplo da Organização Mundial da Saúde (OMS) – e, por isso mesmo, foram objeto de questionamento perante o Supremo Tribunal Federal.

Neste estudo, propomos analisar as decisões proferidas pela Corte no controle de algumas dessas medidas, para apurar se houve extrapolação das competências que lhe foram constitucionalmente atribuídas e, consequentemente, configuração de ativismo judicial.


2.Ainda e sempre o ativismo judicial

No direito constitucional brasileiro, provavelmente, o ativismo judicial se tornou o tema da década. Discutir os limites que se colocam à atividade jurisdicional e os critérios que devem conduzi-la é questão de urgência para a doutrina nacional, que, em mais de uma ocasião, já verificou a expansão insidiosa do Judiciário frente aos demais Poderes, numa prática nociva denominada ativismo judicial.

É importante, nesse cenário, apurarmos o conceito de ativismo, para evitar que dispendamos energia combatendo espantalhos. De início, necessário pontuar que ativismo não é sinônimo de judicialização.

O especial destaque que o Poder Judiciário adquiriu na tradição continental desde o século XX possui razões históricas e políticas. No período pós-guerra, na segunda metade do século XX, os Estados editaram novos textos constitucionais, repletos de direitos fundamentais (Grundrecht) revestidos de força normativa, conformando uma reserva de mínimo existencial que impõe aos Poderes Públicos deveres negativos e positivos. Com efeito, o Estado, para além de respeitá-los, deveria concretizá-los mediante comportamentos positivos. Essa associação intrínseca entre Poder Público e direitos fundamentais constitui um dos pilares das democracias constitucionais contemporâneas.

Para dar efetividade à garantia pretendida pelos direitos fundamentais consagrados nas Constituições do segundo Pós-Guerra é que se deu o fortalecimento da jurisdição constitucional – exercida, no Brasil, pelo Poder Judiciário, na modalidade concentrada e difusa –, que adquiriu a função de controlar o próprio conteúdo dos atos legislativos.1

A Constituição brasileira vigente é produto tardio do pós-Guerra e do processo de redemocratização que coroou o fim do regime ditatorial levado a cabo pela extrema direita desde 1º de abril de 1964 até 15 de março de 1985. 2 A CF/1988 (LGL\1988\3) institui um verdadeiro Estado Democrático de Direito, marcado pelos preceitos majoritário – consolidado nas formas de participação popular no exercício do poder, ainda que mediante representação – e contramajoritário – retratado no núcleo duro e indevassável de direitos fundamentais oponíveis erga omnes e demais cláusulas pétreas. Por outro lado, o Estado Democrático de Direito brasileiro é, ainda, caracterizado pela promessa de inclusão social, para qual o Judiciário exerce importante papel.3-4

Num cenário como esse – regido por uma Constituição de intuito transformador, conteúda de um rol vasto de direitos, reguladora do Estado e da sociedade e guardada por uma jurisdição constitucional apta a enfrentar qualquer dos demais Poderes para assegurar o cumprimento das promessas constitucionais –, é, em certa medida, natural que uma gama maior de questões seja judicializada, principalmente quando se acresce ao quanto posto o processo de massificação da sociedade.

A judicialização, portanto, é um fenômeno social, cuja causa se deve à existência de amplo catálogo de direitos aliado a uma baixa concretização desses mesmos direitos. Consequentemente, a judicialização advém em boa parte da força normativa da Constituição e da eficácia vertical dos direitos fundamentais, não se apresentando, assim, necessariamente, como um problema da teoria do direito.

Ativismo, a seu turno, é um modus operandi do Judiciário, que depende de “como” ele responde ao processo da judicialização. Sobre esse ponto, Clarissa Tassinari destaca:

“É possível perceber, portanto, que a judicialização é mais uma constatação sobre aquilo que vem ocorrendo na contemporaneidade por conta da maior consagração de direitos e regulamentações constitucionais, que acabam por possibilitar um maior número de demandas, que, em maior ou menor medida, dasaguarão no Judiciário; do que uma postura a ser identificada como positiva ou negativa. Isto é, esta questão está ligada a uma análise contextual da composição do cenário jurídico, não fazendo referência à necessidade de se criar (ou defender) um modelo de jurisdição fortalecido.

Por tudo isso, pode-se dizer que a judicialização apresenta-se como uma questão social. A dimensão desse fenômeno, portanto, não depende do desejo ou da vontade do órgão judicante. Ao contrário, ele é derivado de uma série de fatores originalmente alheios à jurisdição, que possuem seu ponto inicial em um maior e mais amplo reconhecimento de direitos, passam pela ineficiência do Estado em implementá-los e desaguam no aumento da litigiosidade – características de sociedade de massas. A diminuição da judicialização não depende, portanto, apenas de medidas realizadas pelo Poder Judiciário, mas, sim, de uma plêiade de medidas que envolvem um comprometimento de todos os poderes constituídos.”5

Nada obstante o ativismo não se confundir com a judicialização, ambos estão correlacionados de alguma maneira. As transformações político-jurídicas que deram azo à judicialização também impulsionaram a expansão do ativismo.

Contudo, o ativismo é um acontecimento cuja causa direta e imediata é um modo específico de decidir por parte dos juízes. Cuida-se de um fenômeno cujo início e eventual fim dependem única e exclusivamente do Judiciário, apesar de poder ser incentivado por outros atores. A judicialização, de outra parte, não nasce da postura dos juízes, mas de uma série de fatores histórico-sociais que independem da sua vontade.

Em resumo, ativismo é um problema de interpretação/aplicação do direito; é um desvio no modo de realizar a atividade jurisdicional, que substitui o direito por critérios decisórios extrajurídicos. Mais precisamente:

“Ativismo é toda decisão judicial que se fundamenta em convicções pessoais, senso de justiça do intérprete em detrimento da legalidade vigente – legalidade aqui entendida como legitimidade do sistema jurídico, e não como mero positivismo estrito ou subsunção do fato ao texto normativo.”6

Clarissa Tassinari esclarece que o ativismo se manifesta nos julgamentos que, nada obstante possuam alguma aparência de juridicidade, não se pautam em elementos jurídicos, mas na vontade do julgador.7 Conforme a autora:

“Em suma, pode-se afirmar que o ativismo judicial é um problema de teoria do direito. Mais precisamente de teoria da interpretação, na medida em que sua análise e definição dependem do modo como se olha para o problema da interpretação do Direito. Vale dizer: é a interpretação um ato de vontade do intérprete ou o resultado de um projeto compreensivo no interior do qual se operam constantes suspensões de pré-juízos que constituem a perseguição do melhor (ou correto) sentido para a interpretação? Definitivamente, nos filiamos à segunda possibilidade de retratação teórica do problema, o que ficará claro no decorrer da exposição.”8

No mesmo sentido, Antoine Garapon, atento aos perigos postos pelo Judiciário ao sistema democrático, associa o ativismo à vontade do juiz: “O ativismo evidencia-se quando, entre muitas soluções possíveis, a escolha do juiz é alimentada pela vontade de acelerar a transformação social ou, ao contrário, de travá-la.”9

O ativismo judicial, debate relativamente recente na doutrina brasileira, foi, de há muito, travado pelos estadunidenses. Por uma série de motivos histórico-contextuais, os juristas estadunidenses foram convocados a discutir, de maneira pioneira, os limites que deveriam ser colocados à atividade jurisdicional. O estudo da evolução doutrinária sobre o tema pode, à primeira vista, parecer despiciendo. Contudo, é de grande valia, mormente quando se tem em vista que muitos pontos críticos que hoje enfrentamos no Brasil já foram debatidos à exaustão pelos norte-americanos.

Nesse sentido, valiosos os escritos de Christopher Wolf, que realizou um resgate histórico acurado acerca do tema. O autor, de início, estabelece a necessidade de diferenciar judicial activism e judicial restraint, o que pretende fazer por meio de duas abordagens distintas.

A primeira abordagem é a mais popular e cunha o conceito de ativismo por meio do exame de como o Judiciário utiliza o poder denominado “quase-legislativo”.10 Para certa corrente doutrinária (realismo jurídico), a atividade jurisdicional implica um poder de legislar. Ao decidir, o juiz, mais do que interpretar, cria o direito. Mesmo sob esse viés de pensamento, colocavam-se debates sobre os limites da atividade judicante no exercício do lawmaking power. Ativismo e judicial restraint, então, extremavam-se de acordo com o grau de liberdade ou limitação do juiz no momento decisório:

“Advocates of judicial activism emphasize the judicial imperative to ‘do justice’ and lend to downplay restraints on judicial power, whereas advocates of judicial restraint tend to emphasize the limits they think should be placed on judicial power in a democracy and try to restrict judicial discretion in various ways.”11

A segunda abordagem decorre da análise histórica da judicial review. A definição de ativismo depende da relação entre judicial review e Constituição – quando o exercício do controle de constitucionalidade privilegia as crenças pessoais e preferências políticas do juiz em lugar de reafirmar a vontade da Constituição, é possível afirmar que a decisão é ativista:

“This history of judicial review gives rise to a definition of judicial activism that focuses on the relation between judicial review and the Constitution: Activism and restraint are functions of the extent to which judicial review can be fairly considered an enforcement of the will of the Constitution, without an infusion of the judge’s own political beliefs of preferences.”12

A judicial review é elemento decisivo no debate sobre ativismo nos Estados Unidos. Apesar de norte-americanos estarem acostumados com o protagonismo judicial, próprio dos países de tradição common law, atribuir aos juízes competência para deixar de aplicar uma lei ou ato do Executivo, sob a escusa de combater a inconstitucionalidade, reestruturou o sistema de forma revolucionária. Dar ao juiz competência para realizar controle de constitucionalidade significava autorizá-lo a participar de discussões que tradicionalmente eram exclusivas dos Poderes Legislativo e Executivo.13

Desde o seu surgimento, a judicial review conflitou com o princípio majoritário. Essa tensão se agravou ao longo do tempo conforme as transformações observadas no sistema de controle difuso de constitucionalidade.14

A judicial review, como tradicionalmente compreendemos, nasce em 1803 a partir do julgamento do caso Marbury Vs. Madison, no qual se estabeleceu que a Constituição escrita, a qual prevê limites ao poder, necessariamente é superior às demais leis, podendo ser utilizada como parâmetro para retirada de eficácia dos atos normativos que a contrariassem. Caso contrário, as restrições pretendidas não teriam efetividade. Desse raciocínio, extraiu-se que a lei que afrontasse disposições constitucionais seria um nada jurídico (void).15

O controle de constitucionalidade, em sua gênese, tinha feição mais moderada se comparado ao modelo contemporâneo de controle. Os defensores da judicial review sustentavam que sua atividade estava de acordo com a democracia, constituindo uma faceta da defesa da vontade popular consagrada na Constituição. Com o tempo, a Corte tornou-se mais consciente de que a judicial review não é estritamente jurisdicional – possui algo de legislação e, por consequência, não estaria submissa aos limites que se colocam à jurisdição stricto sensu:

“Since the modern Court’s conception of its power is less narrowly judicial, not suprisingly some of the inherent limits in judicial review that flowed from the nature of judicial power have been less important.”16

Outra transformação de importância observada na judicial review moderna concerne ao respeito do Judiciário diante da legislação. Na era tradicional, era consenso geral que a lei deveria ser afastada apenas se observada inconstitucionalidade clara.

A contemporaneidade altera sensivelmente as presunções de constitucionalidade tradicionais, admitindo o avanço da judicial review nos casos em que a inconstitucionalidade da lei é ambígua. Por outro lado, chegou-se a considerar (United States v. Carolene Products, de 1938) que, em algumas circunstâncias – casos relacionados a proibições específicas da Constituição, processos políticos que possivelmente conduziriam a revogação de uma lei indesejável, e ações que envolvem direitos de minoria –, caberia à Corte um exercício jurisdicional mais incisivo, relegando-se à presunção de constitucionalidade um escopo mais restrito.17

Conforme Wolf, “That closer judicial look or ‘narrower scope for the presumption of constitucionality’ turned out to be a presumption of unconstitucionality in many of the modern civil liberties cases that followed”.18 As Cortes se convenceram de que tinham papel essencial na defesa dos direitos fundamentais das minorias, negligenciadas pelo Legislativo.

Também é observada na judicial review moderna o enfraquecimento da intitulada “political questions doctrine”, segundo a qual a Corte se negava a adentrar questões fundamentalmente políticas.

Por fim, alterou-se a noção de limites da autoridade da interpretação constitucional levada a cabo pela Suprema Corte. A traditional judicial review asseverava que a interpretação da Constituição feita pela Corte constituía um precedente para a futura política geral do país, admitidas exceções em nome do princípio republicano. Aos poucos, os juristas norte-americanos começaram atribuir ao Judiciário a função própria de interpretar a Constituição para, posteriormente, considerá-lo portador da interpretação suprema.19

O que se observa é que, nos primórdios, a judicial review era contida, isto é, um poder limitado. Entretanto, pouco a pouco se agigantou, libertando-se progressivamente das amarras que inicialmente lhe impunham. A postura adotada pela traditional judicial review pode ser considerada judicial restraint, ao tempo que aquela observada na modern judicial review é o que se intitula judicial activism.20

Sob esse viés, o ativismo judicial se caracterizou como o exercício de um poder (para)legislativo por parte do Judiciário no exame de casos constitucionais. Cuida-se de uma definição extraída da análise da história da judicial review, que se diferencia daquela estabelecida a partir de como o Judiciário exerce o poder “quase-legislativo”. Se nesta abordagem a diferença entre ativismo e judicial restraint é uma questão de gradação de liberdade no exercício da quase-legislatura, naquela as posturas são encaradas como manifestações de poderes de naturezas distintas.21

Wolf, ao término do livro, defende um ativismo judicial moderado, em que a judicial review se coloca a serviço da proteção de direitos individuais e das minorias, do impulsionamento das reformas sociais, da eliminação de discriminações ilegais e do combate às leis inconstitucionais.22-23

Todos os conceitos de ativismos retro reportam prática do Judiciário de, quando do julgamento, substituir o direito pela vontade do julgador (Clarissa Tassinari e Antoine Garapon), pelas convicções pessoais ou pelo senso de justiça (Georges Abboud). Nesse contexto, o ativismo se escamoteia por meio de diversos subterfúgios, a exemplo da invocação do suposto poder discricionário do juiz.

Mesmo as duas abordagens expostas por Wolf implicam em um necessário momento de discricionariedade. Pela primeira, entende-se que o juiz sempre cria direito novo – legisla – ao exercer a função jurisdicional, de modo que ativismo seria a postura tendente a atribuir maior liberdade criativa ao julgador. Pela segunda, ativismo seria a prática legislativa pela Corte mediante resolução de questões constitucionais. A ideia de legislação pressupõe juízo político, discricionariedade ou escolha segundo a vontade. O ativismo, portanto, afasta ou desprestigia o juízo político do Parlamento para dar lugar ao juízo político do Judiciário.

Quando se pensa numa jurisdição exercida com fundamento nas convicções pessoais ou no desejo do juiz em lugar do direito vigente, automaticamente se antevê um poder arbitrário, de cariz voluntarista, atentatório à democracia. Afirmar que, ao julgar, o magistrado se vale de critérios subjetivos, em vez da lei e da Constituição, é constatar que o Judiciário se rebela contra sua própria função – aplicar o direito, não a vontade, ao caso concreto – e suspende os pré-compromissos democráticos vigentes.24

Visto desse modo, o ativismo judicial é sempre prejudicial ao Estado Democrático de Direito. O afastamento da Constituição e das leis é um mal em si mesmo, que não se redime por eventuais consequências práticas benéficas, obviamente, segundo a pura opinião de quem julga. Autorizar que argumentos puramente consequencialistas ou morais se sobreponham à Lei a enfraquece simbolicamente e torna sua efetividade incerta e dependente de avaliações subjetivas e voluntaristas do magistrado. Outrossim, liberta o Judiciário das amarras jurídicas que o limitam, colocando o jurisdicionado sob ameaça constante de abusos.

É sempre bom rememorar que, na democracia constitucional brasileira, o Legislativo e, em certa medida, o próprio Executivo, possuem legitimidade para realizar opções políticas que orientem os rumos de uma comunidade porque compostos por representantes eleitos pelo povo para esse fim. O Judiciário, a seu turno, é formado por juízes que investem em seus cargos pela via burocrática, mediante um concurso25 que afere conhecimento técnico e não representatividade popular, para o exercício da jurisdição. Não lhes cabe realizar juízo político porque não possuem legitimidade para tanto e porque a função que exercem não é a legislativa, mas a jurisdicional; não criam lei, aplicam a lei criada pelo órgão constitucionalmente competente para tanto, sempre, é claro, numa atividade interpretativa inerente que enriquece o produto interpretado (texto normativo).

Daí porque não há bom ativismo. Uma sociedade amadurecida compreende bem que todo ativismo é pernicioso, porque, ao fim e ao cabo, conduz à degeneração do Estado Democrático de Direito.

Mesmo e principalmente em períodos de crise, nenhum poder está autorizado a extrapolar as competências constitucionalmente fixadas, invadindo atribuições que não lhe correspondem. Pelo contrário, é justamente em períodos de crise que as apostas na legalidade constitucional devem ser reforçadas, em especial no que se refere aos direitos fundamentais. Nesse sentido, há uma necessidade de se examinar o modo como o STF vêm se portando diante das medidas tomadas pelo Executivo para o combate da pandemia de COVID-19.


3.ADI 6.341

Entre as decisões mais debatidas nesse período pandêmico – e diversas vezes polemizada –, está a proferida no âmbito da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341.

Editada pelo Presidente da República dia 20 de março de 2020, a Medida Provisória 926 altera a Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068), para dispor sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

Entre as alterações promovidas na lei supramencionada, a Medida Provisória estabelece critérios para adoção de quarentena e isolamento; restrição de rodovias portos e aeroportos; e atribui competência ao Presidente da República para dispor sobre serviços públicos e atividades essenciais26.

Apenas três dias após a edição da medida, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) acionou o Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341, com a finalidade de obter a declaração da incompatibilidade parcial, com a Constituição Federal, relativamente às alterações promovidas no artigo 3º, caput, incisos I, II e VI, e §§ 8º, 9º, 10 e 11, da Lei federal 13.979.

São apontadas duas grandes ofensas à Constituição Federal. A primeira é o uso da Medida Provisória para tratar de matéria reservada à Lei Complementar. A segunda, por sua vez, é a ofensa à autonomia federativa por subtração de competência administrativa comum dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Os dispositivos da MP 926 impugnados na ADI inovaram na Lei tanto no que se refere às medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, quanto às providências de polícia sanitária e aos respectivos legitimados para adotá-las.

Em seu mérito, a matéria é de saúde pública. Enquanto gênero, a saúde foi reservada pela Constituição à competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios27, o que é reforçado pela diretriz de descentralização, com direção única em cada esfera de governo28, e pelo seu financiamento, sustentado via União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Ocorre que, nos termos do parágrafo único do art. 23 da CF (LGL\1988\3), as normas de cooperação entre os entes federativos exigem lei complementar.

Havendo necessidade de lei complementar, o partido autor da ADI defende não caber edição de medida provisória sobre o tema, por força do impeditivo constante do inciso III do § 1º do artigo 62 da Constituição.

Sob a ótica material, alega-se inconstitucionalidade da MP por subtração total de parcela da competência administrativa comum dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para adotarem medidas de isolamento, quarentena, restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos e interdição de atividades e serviços essenciais.

Essa centralização de competência na Presidência da República esvaziaria, em tese, uma dimensão da responsabilidade constitucional dos demais entes federativos para cuidar da saúde, dirigir o sistema único e executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica.

A autoridade dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para promover controle sanitário e epidemiológico, ou seja, cuidar da saúde, não decorre da e nem se delega ou se subordina à União, sendo efetivamente autônoma, como declarado no artigo 18 da Constituição.

São esses os argumentos que sustentam o pedido de declaração de inconstitucionalidade.

A ADI foi distribuída para o Ministro Marco Aurélio de Mello, que acolheu parcialmente o pedido liminar para “tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente”. A decisão foi referendada pelo plenário do Tribunal.

Os fundamentos utilizados pelo Ministro foram os de que os dispositivos da MP não afastam a competência dos demais entes federativos para tomar providências administrativas e normativas.

A decisão foi noticiada como uma derrota para o Presidente da República e, imediatamente, setores sociais passaram a afirmar que o Supremo Tribunal Federal havia retirado os poderes do chefe do Executivo federal29. Esse suposto esvaziamento de poderes foi reforçado por manifestação do Presidente da República quando questionado a respeito do número de mortes provocadas pela pandemia, tendo em vista que, a seu juízo, a responsabilidade havia sido transferida aos Estados e Municípios.30

Questões e debates políticos à parte, cabe a nós analisar se a decisão proferida pela Corte Constitucional foi ou não ativista. Ou seja, se o STF se valeu de argumentos jurídicos para decidir ou se os substituiu por critérios outros, não pertencentes ao direito.

A Medida Provisória em discussão alterou artigos da Lei 13.979, de 2020 (LGL\2020\1068), editada e aprovada pelo Congresso Nacional.

Importante ressaltar que, na ADI em comento, o Supremo Tribunal Federal não está analisando os requisitos da relevância e da urgência, necessários para a edição de Medidas Provisórias, nos termos do art. 62 da Constituição Federal.

Aqui, o STF analisa o mérito da medida, em controle concentrado, exercendo sua função de guardião da Constituição. Diferente do alegado – e muito falado no senso comum midiático whatsappiano –, o Supremo não esvaziou os poderes do Presidente, mas analisou se as disposições da medida estavam de acordo com o texto constitucional.

Ao decidir que a competência para adotar medidas de isolamento, quarentena, restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos e interdição de atividades e serviços essenciais é concorrente, ou seja, cabe à União, aos Estados e aos Municípios, dentro de suas esferas, o tribunal apenas aplicou a Constituição e regularizou um ato normativo que se opunha à lei maior. Na realidade, esse tema, para utilizarmos uma expressão consagrada no debate constitucional, nunca deixou de ser um easy case.

Ao interpretar de maneira adequada ao texto constitucional a MP em exame, o Supremo Tribunal Federal não retirou ou conferiu mais ou menos poderes para as esferas de governo. Apenas corrigiu-os para que estivessem de acordo com os limites definidos pelo texto constitucional.

A bem da verdade, pela letra da Constituição, o Presidente jamais teve os poderes a que se referia a Medida Provisória. Por conseguinte, o STF apenas controlou a Medida Provisória retirando os poderes que indevidamente haviam sido transferidos à Presidência da República. Se o STF não tivesse decidido pela inconstitucionalidade parcial, ao final, a autonomia concorrente positivada no art. 23 da Constituição teria ficado sem qualquer força normativa.


4.ADPF 672/DF

Diferente da medida tratada anteriormente, que tratava de competência e, portanto, tinha um ajuste mais direto, a ADPF 672 diz respeito às condutas do Presidente da República no combate à pandemia da COVID-19.

A medida constitucional, interposta no Supremo Tribunal Federal pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tem como objetivo determinar que o Presidente da República: (i) cumpra o protocolo da OMS, replicado pelo Ministério da Saúde, no sentido da adoção de medidas de isolamento social; (ii) respeite as determinações dos governadores e prefeitos quanto ao funcionamento das atividades econômicas e as regras de aglomeração; (iii) não interfira nas atividades dos técnicos do Ministério da Saúde; que proceda à implementação imediata dos benefícios emergenciais para desempregados, trabalhadores autônomos e informais, bem como proceda à imediata inclusão das famílias que se encontram na fila de espera do programa Bolsa-Família; (iv) que se abstenha de adotar medidas de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus que contrariem as orientações técnicas e sanitárias das autoridades nacionais e internacionais; (v) assegure a manutenção da medida de isolamento social enquanto seja considerada necessária pelas autoridades sanitárias responsáveis pela avaliação das condições de saúde no país; (vi) determine a adoção de procedimentos céleres e desburocratizados para a implementação das medidas econômicas, especialmente destinadas à preservação do trabalho e da renda mínima dos setores mais vulneráveis, como é o caso dos trabalhadores autônomos e informais, bem como da população de baixa renda.

O pedido está embasado em dois argumentos principais, quais sejam: a atuação, supostamente danosa do Presidente da República em relação às medidas de saúde e a atuação tardia e, supostamente, ineficiente, do Governo Federal em relação às medidas econômicas.

De acordo com a OAB, o combate a um vírus de elevada taxa de mortalidade e velocidade de contágio passou a exigir um nível de isolamento social. A medida desse isolamento foi objeto de estudos científicos e da experiência mais ou menos exitosa de países que estão em estágios mais avançados no ciclo de proliferação da doença31. Com base nas evidências científicas coletadas, a Organização Mundial da Saúde, ao lado das principais autoridades sanitárias em todo mundo, tem indicado o distanciamento social como a medida mais adequada e eficiente de contenção da COVID-1932, particularmente após o estágio de transmissão comunitária, declarado no Brasil em 20.03.2020, nos termos da Portaria 454/2020 do Ministério da Saúde (LGL\2020\2878).

Argumenta, então que:

“Não obstante, na contramão das maiores autoridades políticas do mundo, contrariando as recomendações da OMS e as principais referências científicas, sanitárias e epidemológicas, em confronto com as medidas adotadas pelos governos estaduais e com a orientação traçada pelo próprio Ministério da Saúde, criando uma cisão dentro do governo federal, o Presidente da República tem sistematicamente minimizado os efeitos da pandemia do novo coronavírus no Brasil e endossado um afrouxamento das medidas sanitárias de prevenção e de contenção.

Segundo dados do Ministério da Saúde, atualizados em 29.03.2020, o Brasil conta com 4.256 casos confirmados do novo coronavírus e com 136 óbitos ocasionados pela doença. Há praticamente um mês desde a confirmação do primeiro caso, a curva de contágio está em significativa ascensão [...].

A aceleração da curva de crescimento de casos e, portanto, do ritmo de contágio do vírus no Brasil se assemelha àquela de países europeus que passaram a adotar medidas ainda mais duras de confinamento da população. Ao mesmo tempo, estados que implementam o isolamento social têm alcançado taxa menor de infecção, como é o caso de São Paulo.

No entanto, nenhum dado da realidade ou do conhecimento científico parece pautar a atuação do Presidente Jair Bolsonaro. De maneira recorrente e desde o início da crise, o Presidente tem mantido uma atitude negligente, quando não negacionista, em relação à pandemia e seus efeitos no Brasil. Por inúmeras vezes criticou o que chamou de “alarmismo” e de “histeria” por parte da imprensa e de autoridades públicas. Minimizou a doença ao chama-la, de forma irresponsável e leviana, de um simples ‘resfriadinho’ ou ‘gripezinha.”33

Extraímos o trecho supra, in verbis, com o objetivo de demonstrar que a ação foi movida para atacar condutas que o Presidente vem pessoalmente adotando na tentativa de controle da pandemia.

Trata-se de construções democraticamente arriscadas, que podem levar o Supremo Tribunal Federal, eventualmente, dependendo da postura adotada, a definir políticas públicas. A ADPF não questiona ato normativo específico, mas as ações e omissões sistêmicas, as quais se inserem na definição ampla de atos do poder público, presente na Lei 9.882/1999 (LGL\1999\144).

A arguição foi distribuída para o Ministro Alexandre de Morais que, em sede liminar, acolheu parcialmente os pedidos feitos pela OAB.

O Ministro, em primeiro lugar, afirmou que o Poder Judiciário não pode intervir e determinar que outro poder realize medidas administrativas específicas34. Em seu entender, tal interferência pode ferir a separação dos poderes.

Por outro lado, todos os agentes públicos, incluindo o Presidente da República, estão vinculados ao império da lei, e a esse devem ser submetidos. De forma acertada, entendeu o Min. Alexandre de Morais que o Poder Judiciário deve fiscalizar e verificar se as medidas adotadas por outros poderes infringem o ordenamento constitucional:

“Não compete ao Poder Judiciário substituir o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo Presidente da República no exercício de suas competências constitucionais, porém é seu dever constitucional exercer o juízo de verificação da exatidão do exercício dessa discricionariedade executiva perante a constitucionalidade das medidas tomadas, verificando a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão com as situações concretas. Se ausente a coerência, as medidas estarão viciadas por infringência ao ordenamento jurídico constitucional e, mais especificamente, ao princípio da proibição da arbitrariedade dos poderes públicos que impede o extravasamento dos limites razoáveis da discricionariedade, evitando que se converta em causa de decisões desprovidas de justificação fática e, consequentemente, arbitrárias.”35

Ao final, a medida cautelar foi parcialmente deferida para determinar a efetiva observância dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição Federal na aplicação da Lei 13.979/20 (LGL\2020\1068) e dispositivos conexos, reconhecendo e assegurando o exercício da competência concorrente dos governos estaduais e distrital e suplementar dos governos municipais, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, independentemente de superveniência de ato federal em sentido contrário.

Reparemos que, ao decidir, o Supremo nada mais fez do que preservar a competência dos Estados, constitucionalmente assegurada.

Novamente, não há esvaziamento dos poderes do Presidente da República, e não há criação de políticas públicas por parte do Supremo Tribunal Federal. Temos, em realidade, o maior Tribunal do país, conferindo força normativa à Constituição Federal, para coibir abusos por parte do Poder Executivo que, em determinados atos e determinações, acabou por contrariá-la.


5.ADI 6.351

Analisaremos, por fim, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.351, proposta, também, pela Ordem dos Advogados do Brasil.

A ação questiona a constitucionalidade da Medida Provisória 928, cujo art. 1º altera a Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068), que, conforme já mencionado, dispõe sobre medidas de enfrentamento à emergência do novo coronavírus.

Entre as alterações promovidas pela MP 928/2020 (LGL\2020\2884) está a inserção, na Lei, do art. 6º-B, para dispor sobre o atendimento dos pedidos de acesso à informação enquanto durar o período de calamidade pública36.

Em resumo, a medida suspende os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação em órgãos que tenham estabelecido regime de quarentena, teletrabalho, determina que os pedidos de acesso à informação pendentes de resposta sejam reiterados ao fim do período de calamidade pública, e nega a possibilidade de recurso contra negativas a pedidos de informação.

A Lei de Acesso à Informação entrou em vigor em maio de 2012 e representou o marco de uma mudança de paradigma no sentido de efetivar a abertura do Estado aos controles democráticos. A diretriz central firmada por seu art. 3º, I37, concretiza a cultura da transparência acolhida pela CF (LGL\1988\3) ao prever a observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção.

Na visão da OAB, a Medida Provisória apresenta vício de inconstitucionalidade formal, já que não apresenta os requisitos da relevância e da urgência, exigidos pelo art. 62 da CF (LGL\1988\3), e também vício de ordem material, em função das restrições desproporcionais e arbitrárias ao direito à informação, à transparência e à publicidade.

Nota-se que a suspensão dos prazos para apreciação de pedidos, na forma prevista pelo § 1º do art. 6º-B, atinge de forma desproporcional o direito de acesso à informação. Trata-se de autorização genérica e aberta de negativa à apreciação dos pedidos, que abre margem excessiva de discricionariedade à autoridade pública, sem oferecer, como contrapartida, parâmetros suficientemente claros e detalhados e tampouco vias de controle jurídico ou social.

A ADI foi distribuída para a relatoria do Ministro Alexandre de Morais, que deferiu a medida cautelar, determinando a suspensão dos efeitos do art. 6º-B da Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068), incluído pelo art. da Medida Provisória 928/2020 (LGL\2020\2884). A decisão foi referendada pelo plenário.

Ao decidir, o Min. afirma que a CF (LGL\1988\3) consagrou expressamente o princípio da publicidade como um dos vetores imprescindíveis à Administração Pública, conferindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e garantindo pleno acesso às informações a toda a Sociedade. A consagração constitucional de publicidade e transparência corresponde à obrigatoriedade do Estado em fornecer as informações solicitadas, sob pena de responsabilização política, civil e criminal, ressalvadas as hipóteses constitucionais de sigilo.

Sendo assim, e tendo em vista que a Medida Provisória não estabelece situações excepcionais e concretas impeditivas de acesso à informação, pelo contrário, transforma a regra constitucional de publicidade e transparência em exceção, padece de inconstitucionalidade.

Novamente, não se trata de derrota política do governo, mas sim a nulificação de nova medida inconstitucional editada pelo Poder Executivo.


6.Considerações finais: a linha tênue entre ativismo e concretização da Constituição Federal

A sombra do ativismo é uma ameaça constante sobre o Poder Judiciário brasileiro que, em não raras ocasiões, até mesmo como consequência da crescente judicialização havida após a promulgação da CF/1988 (LGL\1988\3), é acionado para se posicionar sobre questões políticas, de grande relevância social. Na pandemia da COVID-19, não poderia ser diferente.

É em períodos de crise que recrudesce a necessidade de observância ao texto constitucional, do qual a Corte é a guardiã mais importante. Contudo, a pretexto de proteger o texto, não se pode validar decisões que, a bem da verdade, terminam por contrariá-lo, porquanto ativistas. Daí a necessidade de submeter a atuação do STF ao escrutínio da CF (LGL\1988\3). Nem sempre, porém, é fácil divisar a aplicação normal da legalidade em relação a uma postura ativista.

Em composição intitulada Fine Line38, lançada em 2005 como parte do álbum Chaos and Criation in the Backyard, Paul McCartney anuncia a existência de uma linha tênue entre a imprudência e a coragem39, abordando as escolhas da vida e como por vezes caminhos ligeiramente distintos podem levar a lugares completamente diferentes.

Entre decisões ativistas e decisões que aplicam a Constituição Federal em casos difíceis, existe, igualmente, uma linha tênue, uma fronteira opaca, que somente uma criteriologia acurada é capaz de identificar.

Nas decisões analisadas nos itens antecedentes, o STF caminhou por essa fine line. Nada obstante isso, bem lida a fundamentação, percebe-se que o resultado não pode ser equiparado a ativismo judicial. Muito pelo contrário. Nos três julgamentos retro, o Supremo limitou-se à aplicação da CF (LGL\1988\3) e ao exercício do controle de constitucionalidade, conforme autorizado pelo texto constitucional.

No âmbito dos Estados Constitucionais emergidos no segundo pós-Guerra, nenhum ato de poder público, nem mesmo os emitidos pelo Chefe de Estado e de Governo, resiste ao controle de constitucionalidade formal e substancial. Com efeito, o período pós-bélico caracteriza-se pelo trunfo da jurisdição constitucional como instrumento assecuratório da concretização dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais, oponível a todo e qualquer ato do Poder Público. 40

Destarte, a Constituição também vincula o Presidente da República. Consequentemente, qualquer ato presidencial editado contra constitucionem não só pode como deve ser nadificado pelo STF, sob pena de omissão no exercício da competência que lhe foi constitucionalmente atribuída, qual seja, a defesa erga omnes do texto maior.

Assim, já passou da hora de pararmos de olhar as árvores e vermos uma suposta “crise entre Executivo e Judiciário” para enxergarmos a floresta e compreendermos que o STF está exercendo sua função de jurisdição constitucional, agindo como constante obstáculo perante medidas desgovernamentais de desvio ou abuso de poder.


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1 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2020. p. 425 et seq. 2 “Portanto, isso que no Continente se verificou de modo imediato, no Brasil, demorou anos para ser assimilado, ocorrendo apenas com o processo constituinte em 1987-88. Assim, os avanços que foram realizados no âmbito do direito constitucional europeu também puderam ser percebidos na América Latina, entretanto, neste contexto, como ruptura dos regimes ditatoriais, o que veio a ocorrer de forma tardia”. TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 41. 3 Nesse sentido: “Às facetas ordenadora (Estado Liberal de Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), o Estado Democrático de Direito agrega um plus (normativo-qualitativo), representado por sua função nitidamente transformadora, uma vez que os textos constitucionais passam a institucionalizar um ‘ideal de vida boa’, a partir do que se pode denominar de cooriginariedade entre direito e moral (Habermas). Os conteúdos compromissórios e dirigentes das constituições – e a do Brasil é típico exemplo –, apontam para as possibilidades do resgate das promessas incumpridas da modernidade tardia, onde o welfare state não passou de um simulacro”. STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 401. 4 É necessário rememorar que o Brasil, ao contrário de outros países, não viveu o Estado Social, essencial à compatibilização das promessas da modernidade e ao desenvolvimento capitalista. O Estado Democrático de Direito surge com intuito de promover transformações sociais: “O Estado Democrático de direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do Estado social. É nesse sentido que ele é um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio do Estado social de Direito. Registre-se que os direitos coletivos, transindividuais, por exemplo, surgem, no plano normativo, como consequência ou fazendo parte da própria crise do Estado Providência. Desse modo, se na Constituição se coloca o modo, é dizer, os instrumentos para buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira dimensões, via institutos como substituição processual, ação civil pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção (individual e coletivo) e tantas outras formas, é porque no contrato social – do qual a Constituição é a explicitação – há uma confissão de que as promessas da realização da função do Estado não foram (ainda) cumpridas” (g.n.). STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 47. 5 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 32. 6 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. Op. cit., p. 1371. 7 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 148. 8 TASSINARI, Clarissa. Op. cit., p. 56. 9 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p.56. 10 WOLF, Christopher. Judicial activism: bulwark of freedom or precarious security. rev. Nova Iorque: Rowman e Littlefield Publishers, 1997. p. 1. 11 WOLF, Christopher. Op. cit., p. 2. 12 WOLF, Christopher. Op. cit., p. 1. 13 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 87. 14 WOLF, Christopher. Judicial activism: bulwark of freedom or precarious security. rev. Nova Iorque: Rowman e Littlefield Publishers, 1997. p. 9. 15 WOLF, Christopher. Op. cit., p. 11. 16 WOLF, Christopher. Op. cit., p. 27. 17 WOLF, Christophebr. Op. cit., p. 28. 18 Idem. 19 WOLF, Christopher. Op. cit., p. 29. 20 “Traditional judicial review – limited to enforcement of the clear comands of an intelligible Constitution – would represent the side of judicial restraint, while modern judicial review – based on judicial legislation in the ‘gaps’ of a Constitution containing vague general commands – would represent the side of judicial activism”. WOLF, Christopher. Op. cit., p. 30. 21 WOLF, Christopher. Op. cit., p. 30. 22 WOLF, Christopher. Op. cit., p. 112. 23 No presente artigo, subscrevemos o entendimento de Georges Abboud, segundo o qual não é necessário, no Brasil, encorajar o ativismo para alcançar o quanto pretendido por Wolf. Ver: ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 709. 24 ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 709. 25 Há também as nomeações pelo quinto constitucional, que tão pouco dependem de aprovação ou da escolha popular. 26 “Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena […] VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; b) locomoção interestadual e intermunicipal; […] § 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. § 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. § 10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador. § 11. É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.” 27 “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; [...].” 28 “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; [...].” 29 Disponível em: [www.sul21.com.br/ultimas-noticias/politica/2020/04/em-derrota-para-bolsonaro-stf-confirma-poder-de-estados-e-municipios-na-pandemia/]. 30 “Não adianta a imprensa colocar na minha conta essas questões, não adianta botar a culpa em mim”, declarou Bolsonaro na manhã desta quarta-feira (29/4), em frente ao Palácio da Alvorada. Segundo ele, os jornais o “esculhambaram” por ele ter dito “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, ao comentar sobre a evolução das mortes pelo novo coronavírus no Brasil. “Esculhambaram comigo. Fui achincalhado por parte da mídia, fiz minha parte desde o começo, a missão do chefe é decidir. O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que essas medidas (de restrição) são a cargo dos governadores e prefeitos”, reclamou o presidente, que voltou a culpar os chefes de estados e municípios pelas mortes, e citou diretamente o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB). Disponível em: [www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/04/29/interna_politica,849577/bolsonaro-culpa-governadores-mortes-e-reclama-de-repercussao-do-e-dai.shtml]. Acesso em: 26.05.2020. 31 “Coronavírus: 5 estratégias de países que estão conseguindo conter o contágio”. BBC Brasil, 18.03.2020. Disponível em: [www.bbc.com/portuguese/internacional-51937888]. 32 “OMS reforça necessidade de isolamento social e testes para conter velocidade das transmissões de coronavírus”, O Globo, 30.03.2020. Disponível em: [g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/30/oms-reforca-necessidade-deisolamento-social-e-testes-para-conter-velocidade-das-transmissoes-decoronavirus.ghtml?utm_source=push&utm_medium=app&utm_campaign=pushg1]. 33 STF – ADPF 672/DF. Extraído da petição inicial, fls. 4 e 5. 34 “No exercício de suas atribuições, ao Presidente da República está assegurado o juízo de conveniência e oportunidade, podendo, dentre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquelas que entender como as melhores para o interesse público no âmbito da saúde, da assistência e da econômica. A AGU, inclusive, trouxe aos autos uma série de medidas administrativas implementadas e planejadas – no campo social e econômico – e normativas (edição de medidas provisórias e decretos) pelo Presidente da República e pelos órgãos da administração pública federal no sentido de prevenir e combate a pandemia. Assim sendo, em juízo de cognição inicial, incabível o pedido da requerente de medida cautelar para que o Judiciário substitua o juízo discricionário do Executivo e determine ao Presidente da República a realização de medidas administrativas específicas”. STF, ADPF 672/DF. Decisão monocrática. Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 08.04.2020. 35 STF, ADPF 672/DF. Decisão monocrática. Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 08.04.2020. 36 “Art. 1º A Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, passa a vigorar com as seguintes alterações: ‘Art. 6º-B Serão atendidos prioritariamente os pedidos de acesso à informação, de que trata a Lei nº 12.527, de 2011, relacionados com medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de que trata esta Lei. § 1º Ficarão suspensos os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos ou nas entidades da administração pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que, necessariamente, dependam de: I - acesso presencial de agentes públicos encarregados da resposta; ou II - agente público ou setor prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da situação de emergência de que trata esta Lei. § 2º Os pedidos de acesso à informação pendentes de resposta com fundamento no disposto no § 1º deverão ser reiterados no prazo de dez dias, contado da data em que for encerrado o prazo de reconhecimento de calamidade pública a que se refere o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. § 3º Não serão conhecidos os recursos interpostos contra negativa de resposta a pedido de informação negados com fundamento no disposto no § 1º. § 4º Durante a vigência desta Lei, o meio legítimo de apresentação de pedido de acesso a informações de que trata o art. 10 da Lei nº 12.527, de 2011, será exclusivamente o sistema disponível na internet. § 5º Fica suspenso o atendimento presencial a requerentes relativos aos pedidos de acesso à informação de que trata a Lei nº 12.527, de 2011’.” 37 “Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; [...].” 38 MCCARTNEY, Paul. Fine Line. Londres: AIR, 2004. 39 “There is a fine line between recklessness and courage; It's about time, you understood which road to take; It's a fine line, your decision makes a difference; Get it wrong, you'll be making a big mistake.” 40 WHAL, Rainer. Los últimos cincuenta años de Derecho administrativo alemán. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 34.

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