O PANORAMA DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
- Raul Maia
- 13 de out. de 2020
- 30 min de leitura
Área do Direito: Constitucional; Direitos Humanos Resumo: O presente artigo tem por objetivo traçar diretrizes acerca da evolução histórica das gerações dos direitos fundamentais até a concepção de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos para, enfim, delinear um panorama geral à luz da Constituição Federal de 1988. Os direitos transindividuais representam o redimensionamento fundamental em prol da solidariedade dos direitos. Emergiram como forma de repreensão, em especial, aos arbítrios nas relações do trabalho, bem como contra reiteradas violações dos direitos humanos. Tais direitos ganharam mais densidade após a crueldade vivenciada pelo mundo durante a Segunda Grande Guerra e fundações de organismos internacionais, em especial a ONU. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, vislumbra-se o reconhecimento sobre a importância dos direitos de terceira dimensão, tratados como direitos transindividuais, tais como patrimônio público e social, meio ambiente e proteção ao consumidor. A Carta Magna atribuiu, ainda, ao Ministério Público, a incumbência de protegê-los por meio do Inquérito Civil e da Ação Civil Pública. O zelo do constituinte ao elevar tais direitos ao patamar constitucional e estabelecer garantias para sua tutela como forma de manutenção da sociedade moderna é a maior comprovação da sedimentação de tal dimensão. A pesquisa é eminentemente bibliográfica e o método utilizado é o dedutivo. Palavras-chave: Direitos transindividuais – Terceira dimensão – Direitos e garantias fundamentais Abstract: This article aims to outline guidelines regarding the historic evolution encompassing generations linked to fundamental rights until the conception of diffuse, collective and homogeneous individual rights in order to, subsequently, define a general overview in the light of Brazil’s 1988 Federal Constitution. The transindividual rights represent the fundamental rescaling on behalf of the solidarity of rights. They emerged as a form of reprimand, especially, for arbitrary acts in labor relations, as well as against repeated violations of human rights. They gained more density after the cruelty experienced by the world during the Second World War and foundations of international organizations, especially the UN. With the enactment of the Federal Constitution of 1988, the recognition of the importance of third-dimensional rights, treated as transindividual rights, such as public and social patrimony, environment and consumer protection, is envisaged. The Magna Carta also assigned the Public Prosecutor's Office the task of protecting them through the Civil Inquiry and the Public Civil Action. The zeal of the constituent in elevating these rights to the constitutional level and establishing guarantees for their guardianship as a form of maintenance of the modern society is the greater proof of the sedimentation of such dimension. The research is eminently bibliographical and the method used is the deductive. Keywords: Transindividual rights – Third dimension – Fundamental rights and guarantees Sumário: Introdução - 1. Evolução histórica dos direitos fundamentais e suas dimensões - 2. Conceito de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos - 3. Panorama dos direitos transindividuais da Constituição Federal de 1988
Introdução
A busca da realização fraterna, eis o grande propósito dos direitos transindividuais. Noutras palavras, o reconhecimento de que existem direitos que não podem ser pessoalmente reduzidos, os quais exigem uma perspectiva coletiva de aplicação.
Os direitos transindividuais nos remetem à ideia de que somos indivíduos solidariamente atuantes de uma sociedade. Evidentemente, tal condição remete a um segundo plano os direitos individuais, na medida em que devem respeito à coletividade, sendo, portanto, insuficiente qualquer instrumentalidade para satisfação solitária.
Intrinsecamente ligados a essa acepção encontram-se diversos princípios, em especial a sua leitura a partir do postulado da dignidade da pessoa humana, o qual ganhou notoriedade após o giro kantiano pós-moderno.
Até a Era das Revoluções, o cenário calcava-se num Estado fundado na pessoa do Rei, cujo governo se valia dos poderes ilimitados, oriundos da irresponsabilidade monárquica que refreava qualquer avanço em prol da sociedade.
Os ideais da época foram enfraquecidos com as revoluções regionalizadas no continente europeu, em especial a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, no continente americano, ambas ocorridas no século XVIII.
Como se sabe, a Revolução Francesa, lastreada pelos pensamentos Iluministas, aflorou após articulação da burguesia – classe social em plena ascensão em razão do grande poderio econômico conglobado –, ao disseminar ideias liberais em aliança com as demais classes sociais contra o Estado Absolutista. A Independência dos Estados Unidos, por sua vez, é fruto da insatisfação colonial com os atos repressivos ingleses, como o aumento de impostos e restrições aos direitos individuais.
No continente europeu, uma preocupação maior com o estabelecimento de garantias e proteções em oposição à inferência estatal, de tal forma que a Declaração precede à própria Constituição pós-revolucionária. No outro, a ideia inicial de se formar um Estado Federativo forte, lastreado no semblante organizacional, mas que apenas quatro anos depois, em 1791, rendeu-se às garantias conferidas pelas dez primeiras emendas.
De forma geral, o deslinde histórico se revela um martírio à luta dos direitos e garantias individuais ao esculpi-los paulatinamente em dimensões/gerações, conforme acepção de Karel Vasak.
A primeira dimensão surge, assim, como necessidade incessante de livrar-se das rédeas do Estado, impostas ao homem cidadão. A segunda dimensão decorre dos efeitos materiais da sobreposição da burguesia como classe dominante, ocasionando uma verdadeira degradação da raça humana, em especial diante da falácia do mito da igualdade formal, perspectiva clara diante da revolução industrial.
Posteriormente, exsurgem os direitos de terceira dimensão, denotando o aspecto grupal no qual se encontra inserido o indivíduo enquanto fundamental para preservação ou satisfação do objeto jurídico.
Invariavelmente, o sujeito solitário, preservado seu direito subjetivo, apresenta-se integrante de uma coletividade que o confere os direitos de terceira dimensão, os quais transcendem a sua individualidade e atingem a sua capacidade abstrata de correlação com seus semelhantes, considerando-o elemento de um sistema maior e ignorando qualquer valoração de cunho segregativo ao conceituá-lo, sobretudo, humano.
Como corolário de sua integração, ou até mesmo, por vezes, em razão de sua natureza humana, conferem-se direitos ao sujeito, de modo que sua lesão ou satisfação se perfaça perante uma ótica universalista.
O horizonte deste trabalho é, ao largo do estudo da edificação dos direitos fundamentais de terceira dimensão, elucidar a sua inserção na Constituição de 1988, revelando uma nítida preocupação com a perspectiva difusa dos direitos.
1. Evolução histórica dos direitos fundamentais e suas dimensões
Para o efetivo estudo e compreensão dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos à luz da Constituição Federal de 1988, cumpre-nos traçar uma acepção histórica no que tange à evolução dos direitos e garantias fundamentais como um todo.
Para tanto, consigne-se que “os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo [...]”1. Nota-se que, historicamente, cada dimensão vincula-se a um fator social relevante. Daí a nossa dificuldade em aceitar a existência de uma quarta ou quinta dimensões.
Em linhas gerais, as gerações, também chamadas de dimensões pela doutrina moderna, podem ser representadas pelo lema da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade, segundo a concepção comparativa do jurista tcheco Karel Vasak, apresentada em 1979.
Assim, como consequência do pensamento liberal fomentado no Século XVIII, os direitos da primeira geração têm como escopo a liberdade, exprimida nos direitos civis e políticos, chamados de liberdades públicas2.
Nessa toada, os titulares desse direito dimensional positivado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 são os indivíduos. Em um primeiro momento, os Direitos do Homem são inerentes àqueles cuja inserção independe de sua integração em uma sociedade política, e os Direitos do Cidadão, em contraposição, pertencem aos sujeitos participantes de uma sociedade política3.
Em virtude do contexto fático “a consequência imediata da proclamação de que todos os seres humanos são essencialmente iguais, em dignidade e direitos, foi uma mudança radical nos fundamentos da legitimidade política”4.
Ademais, ainda no século XVIII, encontram-se registradas as batalhas em favor dos direitos fundamentais de segunda geração. Os direitos de segunda dimensão são exprimidos pelos direitos sociais, econômicos e culturais, nascendo “abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser o que os ampara e estimula”5.
Nesta senda, os direitos sociais trouxeram à baila a importância de proteger a instituição como uma realidade social cujo enfoque amplo transcende o indivíduo solitário, pautando-se na valoração da personalidade6.
É notório que os direitos sociais se lançavam ao primado da igualdade material, uma vez que a igualdade formal já estava consagrada pelo Liberalismo, e, aliás, como forma
“[...] pomposa de inutilidade para a legião crescente de trabalhadores, compelidos a se empregarem nas empresas capitalistas. Patrões e operários eram considerados, pela majestade da lei, como contratantes perfeitamente iguais em direitos, com inteira liberdade para estipular o salário e as demais condições de trabalho.”7
A essa altura, a burguesia, ciente de sua prerrogativa de classe, não se interessava em postular um regime de igualdade material da mesma maneira como havia reivindicado a liberdade. Um regime como esse não coadunava com o domínio de classe no qual se lastreia a democracia liberal burguesa8.
Registre-se que antes da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais pelas Constituições dos países, os direitos de segunda dimensão tiveram um momento de baixa normatividade e eficácia, já que sua natureza exige do Estado algumas prestações materiais. Por essa razão, em boa parte dos ordenamentos jurídicos, prevaleceu a ideia de que apenas os direitos de primeira dimensão eram de aplicação imediata, enquanto os direitos de segunda dimensão possuíam aplicabilidade mediata, dependendo, portanto, da atuação do legislador ordinário9.
Por conseguinte, os direitos de segunda dimensão, por meio da relevância dada às garantias institucionais, trouxeram nova valorização aos direitos de liberdade, até então percebidos como “oposição irremediável entre indivíduo e o Estado”, e o transformaram de uma concepção subjetiva para uma concepção objetiva, visando ao máximo respeito aos princípios e valores da ordem jurídica estabelecida10.
“A concepção de objetividade e de valores relativamente aos direitos fundamentais fez com que o princípio da igualdade tanto quanto o da liberdade tomassem também um sentido novo, deixando de ser mero direito individual que demanda tratamento igual e uniforme para assumir, [...], uma dimensão objetiva de garantia contra atos de arbítrio do Estado.”11
Durante o Século XVIII e final do Século XIX, lutou-se também pela consagração dos direitos de terceira dimensão, com especial destaque no pós-guerra, os quais nos remetem à fraternidade do lema revolucionário francês, ou, como defende Étienne-Richard Mbaya, os “direitos de solidariedade”12.
“A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que se assenta sobre a fraternidade, conforme assinala Karel Vasak, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção especifica dos direitos individuais ou coletivos.”13
Somando-se aos direitos até então já consagrados, em suma, da liberdade e da igualdade, os direitos da terceira geração não têm como alvo a proteção específica de um indivíduo ou determinado grupo ou um Estado, pois, em sua essência, possuem uma concepção humanizada e universalista.
Os direitos de terceira dimensão despontaram concomitantemente à primeira fase de internacionalização dos direitos humanos, que “teve início na segunda metade do século XIX e findou com a 2ª Guerra Mundial, manifestando-se em três setores: no direito humanitário, na luta contra a escravidão e na regulação dos direitos do trabalhador assalariado”14.
Comporta, no entanto, uma pequena observação acerca da diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais são aqueles positivados pela norma constitucional, motivo pelo qual é a razão de sê-los fundamentais. Os direitos fundamentais representam a criação e a manutenção de “pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana, eis aquilo que os direitos fundamentais almejam”, conforme assevera Paulo Bonavides ao mencionar o pensamento clássico do publicista alemão Konrad Hesse15.
Os direitos humanos, por outro lado, são a essência dos direitos fundamentais. Representam os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, tidos como imprescritíveis16.
Dessarte, o direito humanitário teve como marco internacional a Convenção de Genebra de 1864, ao passo que, em função dela, em 1880, a Comissão Internacional da Cruz Vermelha foi fundada. A primeira revisão ocorreu em 1907, com intuito de estender seus princípios aos conflitos marítimos17.
Já a luta contra a escravidão e a regulação dos direitos dos trabalhadores, em caráter internacional, teve como referência o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890, que estabeleceu as primeiras regras interestatais contra o tráfico de escravos africanos e a criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919, respectivamente18.
Denota-se, portanto, que a afirmação da terceira dimensão de direitos “têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”19.
Após a Segunda Guerra Mundial, a humanidade assimilou a necessidade de valoração máxima da dignidade humana, razão pela qual a Declaração Universal dos Direitos do Homem foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Interessante perceber que os direitos humanos acabaram, a partir do direito internacional, estabelecendo uma via de mão dupla com os direitos fundamentais. De um lado, influenciavam as novas Constituições e suas declarações de direito. De outro lado, bebiam da fonte de Constituições que antecederam a criação da ONU, como a de Weimar, de 1919.
“Não apenas os direitos individuais, de natureza civil e política, ou os direitos de conteúdo econômico e social foram assentados no plano internacional. Afirmou-se também a existência de novas espécies de direitos humanos: os direitos dos povos e direitos da humanidade.”20
Com a universalidade dos direitos fundamentais procurou-se subjetivar de forma concreta e positiva as três dimensões de direito
“na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou daquele país, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado pela sua pertinência ao gênero humano [...]”21.
É natural aos publicistas e juristas a enumeração dos direitos de terceira dimensão, atribuindo-lhes cunho prestigioso em razão de sua evolução e concretização histórica como direitos fundamentais. O surgimento se dá sobre o exercício de reflexão de temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade22.
Por outro lado, Karel Vasak, Diretor da Divisão de Direitos do Homem e da Paz, da UNESCO, identifica cinco direitos de terceira dimensão, a saber: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação.
Nesse sentido, pondera Paulo Bonavides:
“A relação de Vasak, em verdade, é apenas indicativa daqueles que se delinearam em contornos mais nítidos contemporaneamente; é possível que haja outros em fase de gestação, podendo o círculo alargar-se à medida que o processo universalista se for desenvolvendo.”23
Ressalte-se, por fim, que embora o objeto em análise limite-se ao estudo da terceira dimensão dos direitos e garantias fundamentais, há de se ressaltar que a doutrina cita direitos de quarta e quinta dimensões. Reiteramos, aqui, nossa dificuldade em apreendê-los sob uma perspectiva eminentemente científica.
Entende-se que os direitos de quarta dimensão se traduzem na democracia positiva, resumidos no direito à democracia, no direito à informação e no direito ao pluralismo. Por intermédio desses direitos torna-se possível a concretização de sociedade aberta como forma de máxima universalidade, na qual o mundo pende ao plano de relações de convivência24.
O direito de quinta dimensão seria composto pela paz, como defende Paulo Bonavides ao afirmar que “Karel Vasak, o admirável percursor, ao colocá-lo no rol dos direitos da fraternidade – a saber, da terceira geração –, o fez, contudo, de modo incompleto, teoricamente lacunoso”.
“Não desenvolveu as razões que a elevem à categoria de norma. Sobretudo, aquelas que lhe conferem relevância pela necessidade de caracterizar e encabeçar e polarizar toda uma nova geração de direitos fundamentais, como era mister fazer, e ele não o fez. O direito à paz caiu em esquecimento injusto por obra, talvez, da menção ligeira, superficial, um tanto vaga, perdida entre os direitos da terceira dimensão.”25
A paz representa a dignidade jurídica derivada do reconhecimento universal. Traduz-se em “pressuposto qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie, reino de segurança dos direitos”, razão pela qual se deve realizar, em termos constitucionais, mediante elevação autônoma e paradigmática da paz a direito da quinta geração26.
Observa-se, em linhas gerais, o progresso histórico e doutrinário dos direitos fundamentais. Outrossim, denota-se imprescindível o estudo de todas as dimensões, uma vez que são vistas de forma conjugadas, não excludentes, complementares e garantias umas das outras. Daí, até mesmo, a marca de inter-relacionariedade dos direitos humanos27.
2. Conceito de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos
Embora a Constituição Federal de 1988 faça referência aos direitos difusos e coletivos ao atribuir ao Ministério Público a função institucional de promover a proteção desses direitos (artigo 129, inciso III, da CF/88 (LGL\1988\3)), o ônus da definição de sua amplitude fora incumbido ao legislador ordinário.
A Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985 (LGL\1985\13)) cuidou de iniciar o trabalho de proteção dos direitos difusos e coletivos, listando, nos três primeiros incisos do seu artigo 1º, o meio ambiente, o consumidor e os bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico como objeto de proteção. O quarto inciso, por seu turno, cuja designação de proteção se destinava a qualquer outro interesse difuso ou coletivo foi, a princípio, excluído por veto presidencial.
“A nova Constituição, porém, acabou por mudar os rumos tímidos da lei e, por prever a ação civil pública, no artigo 129, III, fez menção à tutela do meio ambiente, do patrimônio público e social e de outros interesses difusos e coletivos. A Constituição, dessa maneira, criou a amplitude desejada para a tutela alvitrada na ação civil pública e, em consequência, eliminou a restrição da lei, instituída pelo veto presencial [...].”28
Mas foi com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990 (LGL\1990\40)) que a definição dos chamados direitos coletivos metaindividuais, transindividuais ou interesses coletivos lato sensu saiu efetivamente do âmbito doutrinário e passou ao status legal, nos termos de seu artigo 81.
Os interesses coletivos em sentido amplo encontram-se posicionados em um leque de interação entre o interesse público e o interesse privado e caracterizam-se por serem compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas, excedendo, por conseguinte, o individualismo do sujeito destinatário. Ressalte-se, todavia, que não se constituem propriamente interesse público29.
Nesse seguimento, apesar das nomenclaturas utilizadas, deve-se ter em mente que a figura do interesse se distingue da noção de direito, uma vez que nem todo interesse recebe a proteção jurídica. Logo, não enseja a possibilidade da utilização de mecanismo para sua satisfação. O interesse protegido pelo ordenamento jurídico é o interesse jurídico, pois é quando este exsurge que a lei disponibiliza os instrumentos necessários para sua satisfação30.
“Desse modo, em que pese a divulgação da expressão interesses difusos e coletivos não só na doutrina, como até mesmo no texto constitucional, a ideia que encerra há de ser a de interesses juridicamente protegidos, vale dizer, interesses necessariamente integrantes do círculo relativo aos direitos subjetivos. Quando se fala, pois, em interesses difusos ou coletivos, dever-se-á conceber a noção de que se trata de direitos difusos ou coletivos.”31
O aspecto processual, por outro lado, apresenta-se também bastante relevante, pois a definição dos interesses metaindividuais não se restringe ao compartilhamento do direito entre diversos titulares individuais interligados pela mesma relação jurídica ou fática, mas também pelo fato de que a ordem jurídica entende que a necessidade do acesso individual dos lesados à Justiça pode ser substituída por um processo coletivo cujo objetivo é evitar decisões contraditórias e conduzir os sujeitos de direitos violados a uma solução mais eficiente32.
Aliás, é no plano processual que os interesses metaindividuais tornam-se mais importantes, visto que o processo, como instrumento de execução de certas fórmulas constitucionais viabilizadoras de sua garantia, transforma o direito declarado em direito assegurado33.
Desta feita, o Código de Defesa do Consumidor, ao sistematizar os interesses transindividuais, passou a diferenciá-los, segundo sua origem, em direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito e direitos individuais homogêneos. Contudo, deve-se salientar que a previsão por meio do sistema de defesa das tutelas coletivas, “permite dizer que é admissível, perante o direito nacional, a proteção de qualquer direito transindividual, e ainda a tutela adequada dos direitos que podem ser lesados nas relações características da sociedade de massa”34.
Os direitos ou interesses difusos são “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato” (artigo 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor). Logo, caso a união de interessados indetermináveis seja a mesma situação de fato e o dano seja individualmente indivisível, teremos o que se chama de direitos difusos.
Portanto, extrai-se do conceito supramencionado duas notas essenciais, uma relativa à titularidade do direito difuso e outra relativa a seu objeto. A titularidade, conforme delineado, pertence a uma série indeterminada de sujeitos. O objeto, por sua vez, é sempre um bem coletivo insuscetível de divisão, ao passo que sua satisfação, no que se refere a apenas um interessado, implica necessariamente a satisfação de todos. Em contrapartida, a lesão ao direito de um indica a lesão ao direito de todos35.
“O objeto dos interesses difusos é indivisível. Assim, por exemplo, a pretensão ao meio ambiente hígido, posto compartilhada por número indeterminável de pessoas, não pode ser quantificada ou dividida entre os membros da coletividade; também o produto da eventual indenização obtida em razão da degradação ambiental não pode ser repartido entre os integrantes do grupo lesado, não apenas porque cada um dos lesados não pode ser individualmente determinado, mas porque o próprio interesse em si é indivisível. Destarte, estão incluídos no grupo lesado não só os atuais moradores da região atingida, como também os futuros moradores do local; não só as pessoas que ali vivem atualmente, mas até mesmo as gerações futuras, que, não raro, também suportarão os efeitos da degradação ambiental [...].”36
Consigne-se, ademais, que os direitos difusos são materialmente coletivos, à medida que se vislumbra que o cunho pluralístico não se impõe pela lei, haja vista que se originam do fato de serem necessariamente usufruídos por um número indeterminado de pessoas37.
Os interesses ou direitos coletivos, por outro lado, são “transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (artigo 81, parágrafo único, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor).
Em verdade, é nesse sentido que a Constituição Federal se referiu a direitos coletivos em seu Título II, ou a interesse coletivo, em seu artigo 129, inciso III38.
Os interesses ou direitos coletivos atuam, em sentido estrito, de forma comum a uma coletividade de pessoas e tão somente a elas. Recai sobre os indivíduos dessa coletividade um vínculo jurídico delimitado que os congloba. À título de exemplo, seguem a sociedade comercial, o condomínio, a família etc.39
“Destacam tais direitos e interesses, por conseguinte, dos chamados difusos, pois que pertencem a determinável número de pessoas, ou já determinadas, mas cujo conteúdo continua indivisível”40.
Frise-se, no entanto, que os direitos coletivos não devem estar imperiosamente vinculados ou organizados em torno de entidade associativa (sindicato, associação de consumidores etc.), uma vez que a base da relação jurídica pode ocorrer em relação à parte contrária, exatamente como esclarece o artigo 81, parágrafo único, inciso II, in fine, a exemplo do que ocorre em uma relação jurídica de consumidores com o fornecedor41.
Por fim, os interesses ou direitos individuais homogêneos são “decorrentes de origem comum” (artigo 81, parágrafo único, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor).
A tutela dos direitos individuais homogêneos foi constituída no Brasil por meio do Código de Defesa do Consumir e foi inspirada na class action for damages do direito norte-americano.
Em síntese, na class action do direito norte-americano “o autor não necessita de autorização para agir. A titularidade da ação é atribuída a qualquer membro da classe que demonstre ser seu adequado representante”42.
“São elas normalmente usadas em matéria de defesa do meio ambiente, do consumidor, de controle de atividades econômicas, de ‘civil rights’. Também se examinam, por intermédio de class actions, a validade de cláusulas gerais contratuais de milhares de contratos-tipo e a validade de condições relativas à circulação dos títulos de crédito.”43
“Em sentido lato, os interesses individuais homogêneos não deixam de ser também interesse coletivo”44. Partindo desse ponto, embora os direitos coletivos e os direitos individuais homogêneos se assemelhem por reunirem grupos, categorias ou classes determináveis em sua titularidade, distinguem-se, em contrapartida, quanto à divisibilidade de interesse, ou seja, os interesses individuais homogêneos são divisíveis, supondo uma origem comum45.
Em linhas gerais, a tutela dos direitos individuais homogêneos origina-se de um fato comum, mas gerador de diversas pretensões indenizatórias, cada qual em sua proporção. Por essa razão, a sentença que deferir o direito deve ser genérica, limitando-se, por conseguinte, a reconhecer a responsabilidade do réu pelos danos causados, ficando incumbidos os lesados de se habilitarem no processo, a título individual, para promoção da liquidação da sentença e a comprovação do dano sofrido46.
Traçadas as noções gerais do que são os direitos transindividuais e suas espécies, não é demais consignar a natureza universalista e humanizada dos aludidos direitos, uma vez que tratam do gênero humano indistintamente, atribuindo, por conseguinte, a titularidade de um direito, por vezes, imensurável, sem que haja óbice a sua consagração e proteção.
3. Panorama dos direitos transindividuais da Constituição Federal de 1988
O artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, conforme já deduzido, cuidou de designar ao Ministério Público a função institucional de proteger os direitos difusos e coletivos. Além disso, o Constituinte nominou como interesses difusos o patrimônio público e social, o meio ambiente, aduzindo, também, a existência de outros.
O patrimônio público possui seu conceito na Lei 4.717/1965 (LGL\1965\10) (Ação Popular). Assim se consideram “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico” (artigo 1º, § 1º).
O valor artístico é aquele cuja valoração se encontra no escopo da arte, como é o caso dos bens artesanais nativos contemporâneos. O valor estético, como o próprio nome sugere, refere-se à estética como ramo do conhecimento que trata aquilo que é belo, seja na natureza, seja na arte. “Tais noções se confundem e se completam, pois que todos esses valores estariam, em última análise, inseridos no conceito de arte”. Por seu turno, o valor histórico é aquele pelo qual se relaciona com fatos de grande importância, ocorridos, principalmente, no passado. Já o valor turístico traduz-se, algumas vezes, em valor econômico, pois é marcado pela atração de pessoas de diversos locais, os quais aplicam recursos para sua manutenção. Ressalte-se que podem ser esculpidos tanto pela natureza quanto pelo homem47.
A doutrina, por outro lado, costuma utilizar o termo “patrimônio cultural” para designar o “conjunto dos bens e interesses que exprimem a integração do homem com o meio ambiente (tanto o natural como o artificial), como aqueles de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico ou arqueológico”48.
Por sua vez, o termo “patrimônio social”, expresso no dispositivo constitucional, refere-se diretamente ao interesse social, isto é, à defesa dos interesses de grupos ou categorias de pessoas que suportam algum tipo de hipossuficiência jurídica e à defesa da sociedade como um todo em sentido de valores materiais ou imateriais49.
“A amplitude da expressão patrimônio público e social permite conduzir à interpretação de que tudo aquilo que diga respeito aos interesses da coletividade – seja remotamente, como corre com bens patrimoniais do Estado, seja em sentido estrito, para alcançar aqueles que lhe ensejam diretamente o desfrute [...].”50
Durante a leitura do texto constitucional, é possível verificar a proteção de diversos bens e direitos do patrimônio público, notadamente no que tange à competência legislativa designada aos entes federativos.
Na competência legislativa comum material, verifica-se a proteção de documentos, obras de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos (artigo 23, III) que devem ser implantados por todas as esferas federativas. Também se observa a necessidade de atividade impeditiva no que tange à evasão, destruição e descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural (artigo 23, IV), bem como à proteção do meio ambiente, florestas, fauna e a flora (artigo 23, VII).
Em outra toada, destaca-se a competência concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal quanto à proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (artigo 24, VII) e a responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio público e social (artigo 24, VIII).
Aos Municípios cabe a promoção da proteção do patrimônio histórico-cultural local, observando a legislação e ação fiscalizadora federal e estadual (artigo 30, IX).
O meio ambiente, por seu turno, é largamente protegido pela Constituição, possuindo, inclusive, capitulo próprio na Carta Magna (Título VIII, Capítulo VI), cujo primeiro dispositivo constitucional confere a titularidade do direito a todos e o define como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, designando “ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (artigo 225, caput, da Constituição Federal).
O conceito legal de meio ambiente encontra-se, todavia, no artigo 3º, I, da Lei 6.938/1981 (LGL\1981\21), o qual o caracteriza como “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Extrai-se do supracitado conceito três óticas referentes ao meio ambiente: o meio ambiente natural, cujos bens são apenas naturais, a exemplo do solo, a atmosfera, a água etc.; o meio ambiente artificial, tais como o espaço urbano construído pelo homem; e o meio ambiente cultural, o qual, por vezes, pode coincidir com o patrimônio cultural, por exemplo, a interação do homem ao ambiente, como urbanismo, o zoneamento, o paisagismo, os monumentos históricos e assim os demais bens de valores artísticos, estéticos, turísticos, históricos e arqueológicos51.
“Tudo o que diga respeito ao equilíbrio ecológico e induza a uma sadia qualidade de vida, é, pois, questão afeta ao meio ambiente. Assim, devem ser combatidas todas as formas de degradação ambiental, em qualquer nível. Isso inclui, portanto, até mesmo o combate à poluição visual e à poluição sonora, este último um problema gravíssimo, que hoje tanto atormenta as pessoas, especialmente nos centros urbanos (aeroportos, trios elétricos, trânsito, alarmas, carros de som, igrejas, clubes, propaganda ruidosa etc.).”52
Segundo a Constituição Federal, a lesão ao meio ambiente acarreta sanções de natureza penal e administrativa, sem prejuízo da obrigação de reparar os danos causados. (artigo 225, § 3º, da Constituição Federal).
Quanto à obrigação de reparar os danos causados deve-se destacar que sua responsabilidade é objetiva, afastando-se, portanto, no caso concreto, a discussão sobre culpa, provando-se tão somente o nexo causal entre a conduta e o dano (artigo 14, § 1º, da Lei 6.938/1981 (LGL\1981\21)).
Merece destaque, ainda, a atribuição comum de competências legislativas no que tange à organização de serviços destinados à proteção ao meio ambiente, com extensão a tudo que a ele é inerente, como é o caso das florestas, fauna e flora, e poluentes. (artigo 23, VI e VII). Ressalte-se que “a competência nestes casos se refere às atividades administrativas que alvejam a função protetiva, bem como aos órgãos da estrutura estatal responsáveis pela consecução desses objetivos”53.
Frise-se que nos casos de competência comum, em regra, a União limitar-se-á a estabelecer normas gerais (artigo 24, § 1º), ao passo que aos Estados e o Distrito Federal cabe a função de editar normas suplementares (artigo 24, § 2º)54.
Apesar de haver exclusão aos Municípios no que tange a competência legislativa concorrente, “a própria Constituição, realçando a autonomia dos Municípios, deu-lhes competência para legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (artigo 30, I e II)”55.
No mais, denota-se que a Constituição Federal, manifestamente inclinada a conferir efetividade aos seus comandos normativos, enumerou diversos deveres ao Poder Público, perceptíveis a partir da leitura dos incisos do artigo 225, § 1º56. A título ilustrativo, o inciso VI do referido artigo atribui ao Poder Público a tarefa de “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”.
Já no tocante à proteção das relações de consumo, é possível vislumbrar, inicialmente, que o artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal atribuiu ao Estado a incumbência de promover “a defesa do consumidor”.
“Não foi sem razão que o Constituinte inseriu o direito do consumidor no elenco dos direitos fundamentais. Na correta anotação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, trata-se de fenômeno importante na sociedade contemporânea, pois que se tem mostrado difícil e, às vezes, inócua a tentativa de consumidores, isoladamente, reagirem às espoliações perpetradas por produtores.57”
Aliada à garantia fundamental supracitada, verifica-se ainda a defesa do consumidor como princípio basilar da ordem econômica, consoante o artigo 170, V, da Constituição.
Conceitualmente, nota-se certa abrangência quanto ao conceito de consumidor (art. 2º, CDC (LGL\1990\40)), uma vez que a norma consumerista elenca os consumidores por equiparação, ou seja, a coletividade de pessoas, mesmo que indetermináveis, que participe de qualquer forma na relação de consumo (artigo 2º, parágrafo único); também são equiparados a consumidores as vítimas de um acidente decorrente de um produto ou serviço (artigo 17) e todas as pessoas determináveis ou não determináveis expostas às práticas comerciais (artigo 29).
“No CDC (LGL\1990\40), o consumidor não é uma definição meramente contratual (o adquirente), mas visa também proteger as vítimas dos atos ilícitos pré-contratuais, como a publicidade enganosa, e das práticas comerciais abusivas, sejam ou não comparadora, sejam ou não destinatárias finais. Visa também defender toda uma coletividade vítima de uma publicidade ilícita, como a publicidade abusiva ou violadora da igualdade de raças, de credo e de idades no mercado de consumo, assim como todas as vítimas do fato do produto ou do serviço, isto é, acidentes de consumo, tenham ou não usado os produtos e serviços como destinatários finais. É uma definição para relações de consumo contratuais e extracontratuais, individuais ou coletivos.58”
A competência legislativa para editar normas referentes à proteção do direito do consumidor é concorrente. Portanto, cabe à União editar normas gerais sobre a responsabilidade por dano ao consumidor, ao passo que os Estados e o Distrito Federal devem legislar de forma suplementar (artigo, 24, VIII e §§ 1º e 2º).
De igual atenção, a proteção constitucional direcionada às pessoas com deficiência.
Nessa senda, a Lei Maior cuidou de desenvolver a matéria e dedicar maior proteção às pessoas portadoras de necessidades especiais, que ao longo da história sofrem com a marginalização em razão de suas limitações59, em inequívoca ação afirmativa.
Como marco e norte para a elaboração da Lei 13.146/15 (LGL\2015\5138), bem como objeto de larga adequação de outras normas infraconstitucionais, foi assinado em Nova York, no dia 30 de março de 2007, a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. Mais recentemente, o Brasil participou da assinatura, em junho de 2013, do Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso.
O Congresso Nacional, por sua vez, aprovou os referidos Tratados conforme procedimento descrito no artigo 5º, § 3º, da CF (LGL\1988\3), conferindo à Convenção status de Emenda Constitucional. Na mesma toada, a Presidência da República assinou, em agosto de 2009, o Decreto 6.949, colocando em vigor no ordenamento jurídico pátrio, a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, após ratificação congressista. Já o Tratado de Marraqueche foi tornado constitucional sob o Decreto 9.522, de 8 de outubro de 2018 (LGL\2018\8916).
Denota-se que entre os princípios norteadores dos Tratados está a igualdade de oportunidades, conforme consta expressamente do artigo 3º, alínea “e”, da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio da eliminação de diversas barreiras que impedem a plena e efetiva participação das pessoas portadoras de deficiência na sociedade ou seu acesso à cultura e ao conhecimento.
Em outro vértice, além da Convenção de Nova York e do Tratado de Marraqueche, os quais possuem status de norma constitucional, a própria Constituição, visando suprimir e garantir maior igualdade material a essas pessoas, em seu artigo 227, § 1º, II, determinou ao Estado que promova assistência, por meio de políticas públicas, a fim de criar “programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação”.
Além do dispositivo supramencionado, a Carta Magna atribuiu competência comum aos entes federados no tocante ao poder de legislar a favor da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (artigo 23, II), bem como, em matéria de competência concorrente, permitiu à União, Estados e Distrito Federal legislarem acerca da proteção e integração social das pessoas com deficiência (artigo 24, XIV).
Outrossim, como se observa, o estudo dos direitos difusos não se exaure, uma vez que se infere até mesmo em outras normas constitucionais os direitos anteriormente tratados, bem como outros direitos difusos e coletivos ao longo da Constituição, tais como a proteção à criança e ao adolescente, aos idosos, aos grupos raciais, étnicos, religiosos, à ordem urbanística e entre outros que estão elevados ao patamar de proteção constitucional e outros que certamente surgirão e serão objetos de Emendas Constitucionais.
Ademais, extrai-se do panorama ora estabelecido, a importância da elevação de tais direitos ao patamar Constitucional.
O zelo do Poder Constituinte Originário, ao tratar da matéria, demonstra respeito à evolução histórica dos direitos fundamentais, delineados e consagrados em dimensões/gerações.
No que se refere aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, integrantes da terceira dimensão, o Constituinte fez por bem trilhar, durante a elaboração do texto constitucional, a noção de solidariedade necessária à manutenção da sociedade moderna e do Estado Democrático de Direito, fornecendo diretrizes para atuação da Administração Pública com manifesto intuito de resguardar os direitos transindividuais.
Considerações finais
Historicamente, os direitos fundamentais se edificaram sobre a necessidade de se criar garantias hierarquicamente superiores para proteger determinados bens jurídicos. Daí por que se afirmar que grandes conturbações sociais tiveram o condão de desenvolver novas dimensões de direitos.
Num primeiro momento, como é cediço, voltaram-se para a proteção do indivíduo em oposição às interferências estatais. Eram garantias de cunho negativo, de forma a permitir o exercício de direitos civis e políticos. Num segundo momento, diante da falácia do mito da igualdade formal, pretenderam reequilibrar o desbalanceamento natural da sociedade, por meio, especialmente, dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Já nos idos do Século XIX e início do XX, com ênfase concedida no pós-guerra, ascendem os direitos transindividuais ou de terceira dimensão, vocacionados à união de propósitos. É evidente que esses direitos reposicionam a proteção dos bens jurídicos, que deixa de ser individual e passa a ser coletiva.
O sujeito de direito como titular de um direito transindividual ganha nova perspectiva ante o cenário contemporâneo. Tais direitos, por tudo que representam, acompanham a evolução das necessidades de uma sociedade moderna, com manifesta intenção de conferir e garantir uma vida digna aos seus titulares, indistintamente.
A tutela dos direitos coletivos em sentido amplo foi elevada ao patamar Constitucional pela Carta Magna de 1988, que andou bem ao trabalhá-los durante todo o seu texto sem estabelecer um rol taxativo, bem como ao atribuir ao Ministério Público a função de protegê-los e conceder-lhes mecanismos para sua defesa. Certamente não bastaria somente a declaração dos referidos direitos, haja vista a necessidade de efetivá-los por meios instrumentais, como o Inquérito Civil e a Ação Civil Pública.
Conforme delineado, os direitos difusos têm caráter indivisível e titulares indeterminados, vinculados por uma circunstância de fato, independentemente de relação jurídica entre os sujeitos.
Os direitos coletivos, por sua vez, também se destacam pelo caráter indivisível e titulares indeterminados. Todavia, vinculam-se aos sujeitos integrantes de um grupo, categoria ou classe de pessoas por meio de uma relação jurídica base.
Já os direitos individuais homogêneos são divisíveis e seus titulares são determináveis. A natureza coletiva deriva tão somente da origem comum do direito, perfazendo-se sua reparação, em caso de lesão, individualmente.
Assim, a titularidade do meio ambiente e do patrimônio público atribuída a todos, a proteção aos direitos dos consumidores vítimas de uma propaganda enganosa ou abusiva, a igualdade de oportunidades conferida as pessoas portadoras de deficiências por meio da supressão de barreiras e a proteção da criança e do adolescente, tornam-se demasiadamente relevantes quando garantidos e instrumentalizados mediante uma visão panorâmica, visto que o caráter universal e humano restringe a satisfação solitária sob pena de se incorrer em lídima injustiça.
Aliás, com exceção dos direitos individuais homogêneos, a própria natureza indivisível do objeto tutelado deveria ser embargo à satisfação de pretensão isolada. Entretanto, a suposição deve ser remediada por meio de normas protecionistas, como fez a Constituição Federal de 1988.
Por outro lado, a efetivação dos direitos transindividuais, ainda que bem respaldados pela Constituição Federal, perpassa pelo respeito e pela aplicação das normas por parte dos detentores do Poder, ou seja, os operadores da Máquina Estatal devem, a priori, mediante atuação preventiva, resguardar íntegro o objeto tutelado, para somente como ultima ratio, após insurgir a lesão, valer-se dos instrumentos legais para sua efetivar sua reparação, seja no plano material, seja no moral.
Os direitos transindividuais representam mais do que um compromisso com o efeito cliquet, ou cláusula de não retrocesso, mas uma evolução no tocante à percepção de que determinados bens necessitam de instrumentos coletivos de proteção, dado o fato de que muitas vezes a proteção proferida por poucos indivíduos não é capaz de salvaguardá-lo, como ocorre com o meio ambiente.
Daí a necessidade de que não apenas a Constituição lhes proteja, mas as políticas públicas, de um lado, e as instrumentalizações processuais, de outro, garantam proteção eficaz. A vertente que envolve a coletividade dos direitos faz compreender a insuficiência do individualismo e a inter-relacionariedade que torna todos os direitos fundamentais essenciais para uma vida digna.
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Gênese, evolução e universalidade dos direitos humanos frente à diversidade de culturas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, maio-ago. 1997 p. 19. 13 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 569. 14 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 67. 15 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 561. 16 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 562. 17 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 67. 18 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 67-68. 19 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 569. 20 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 69. 21 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 574. 22 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 569. 23 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 569. 24 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 571. 25 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 579. 26 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 583. 27 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direitos humanos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 34. 28 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1995. p. 28. 29 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 46. 30 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública.., cit., p. 29. 31 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública..., cit., p. 30. 32 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 46. 33 GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela dos interesses difusos: doutrina, jurisprudência e trabalhos forenses. 16. ed. São Paulo: Max Limonad, 1984. p. 36. 34 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2007. v. 2. p. 726. 35 GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela dos interesses difusos... cit., p. 31. 36 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 49. 37 BENJAMIN, Antônio H. V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 476. 38 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 50. 39 GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela dos interesses difusos... cit., p. 30. 40 FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direito do consumidor. 11. ed. São Paulo: Atlas: 2012. p. 434. 41 BENJAMIN, Antônio H. V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor, cit., p. 479. 42 GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela dos interesses difusos... cit., p. 79. 43 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual de acordo com a Constituição de 1988. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 138. 44 MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 51. 45 MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 50. 46 BENJAMIN, Antônio H. V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor, cit., p. 481-482. 47 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública..., cit., p. 26. 48 MAZZILLI, Hugo Nigro. A tutela dos interesses difusos em juízo, cit., p. 162. 49 MAZZILLI, Hugo Nigro. A tutela dos interesses difusos em juízo, cit., p. 163. 50 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública..., cit., p. 25. 51 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 137. 52 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 137. 53 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública..., cit., p. 17. 54 “No campo da competência concorrente, pode-se dizer que o propósito de entregar à União a responsabilidade por editar normas gerais se liga à necessidade de nacionalizar o essencial, de tratar uniformemente o que extravasa o interesse local. Ganha importância como critério aferidor de legitimidade da lei o fator de predominância do interesse em questão” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 908-909). 55 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública..., cit., p. 18. 56 MAZZILLI, Hugo Nigro. A tutela dos interesses difusos em juízo, cit., p. 135. 57 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública..., cit., p. 20. 58 BENJAMIN, Antônio H. V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor, cit., p. 93. 59 MAZZILLI, Hugo Nigro. A tutela dos interesses difusos em juízo, cit., p. 514-515.
Emerson Ademir Borges de Oliveira
Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Coordenador-Adjunto do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Marília. Advogado e parecerista. emerson@unimar.br
Guilherme Oliveira Ortega
Bacharel em Direito pela Universidade de Marília. Advogado guiii.ortega@hotmail.com